domingo, 10 de outubro de 2010

Capítulo IX - Volta à França

Os cafés, em Paris, não eram mais como os de antigamente. Agora vários turistas passeiam pelas praças à procura dos famosos bares franceses. Aquela calma e beleza que tinham no passado se foram com os flashes e vozes escandalosas.
A jovem arqueóloga Eleanor LeBeau estava no Montecristo Café e este não era tão famoso, apesar de ser um dos mais lindos de Paris. Podia ver, de sua mesa posta debaixo de um aconchegante toldo vermelho, o Arco do Triunfo, atrás das árvores que compunham a paisagem da grande Avenida Champs Élysées.
Ela olhava para os turistas com desdém, quase não admitindo que em meio a aquela confusão que provocavam, sua alegria contagiava a todos incluindo ela mesma. Eleanor via os homens que a haviam procurado naquela fatídica tarde; para ir a aquele maldito Vale. Sim, eles estavam ali novamente, mas agora Dr. René Bourdeaux, chefe do Département de Histoire, estava com eles.
O Dr. Bourdeaux via nitidamente que ela estava exausta, fazia somente dois dias que a moça tinha voltado à França e agora ele entendia porque ela não o tinha procurado ainda. A tristeza no olhar dela quase tirava sua beleza. “O que teria acontecido com ela para estar assim?”, perguntou a si mesmo. Ele indagou:
- Então, Mademoiselle LeBeau, o que aconteceu, você está com o Ídolo?
- Ídolo? Não, Monsieur Bourdeaux, eu não estou com ele.
“Ídolo?”, pensou ela. Sim, o Ídolo de Ouro, o Uirapuru. Ela se lembrava ainda, sabia o que acontecera; agora não passava de lembranças, mas a dor era forte ainda e ela quase podia vivenciar aquilo de novo...



Eleanor bateu desesperada contra a parede de pedra, contra a passagem que agora se fechara em sua frente, selando o destino de seu amor. Ela não podia acreditar naquilo, na verdade ela não queria. Como ele pôde ter se sacrificado daquela forma, não era do feitio do Beto se entregar daquela maneira sem luta. Devia haver alguma forma daquilo ser acionado sem que ele ficasse preso, teria que ter uma forma de abrir aquela droga de porta.
- Mince! Beto, non...
Foi quando ela escutou um som, uma espécie de estalo, mas muito alto! Pensou o que poderia ser aquilo e outro som igual foi ecoado. Sim, agora ela sabia o que era, um disparo, um tiro! Mas, não era de um revólver, tinha que ser de uma arma maior para que ela pudesse ouvir, será que havia alguém o atacando? Então ela se lembrou do embrulho de pano na mochila dele, era uma arma realmente, algum rifle ou algo assim.
Foi quando as pedras começaram a cair, o teto estava cedendo ao tremor, ela tinha que se decidir e tinha que ser rápido. Ela chorou, passou a mão nas pedras que a separavam dele e seguiu para o sarcófago, rumou para o Templo.
Ainda abalada pelo que acontecera, Eleanor mal viu como se aproximou do sarcófago. Era a câmara mais trabalhada da construção, com lajes de pedras coloridas formando desenhos no chão. Havia uma espécie de buraco no centro da sala onde estava um sarcófago de pedra com frisos dourados. Existiam seis discos de ouro presos à parede do buraco. Tudo muito bem trabalhado e valioso, mas Eleanor não se importava com nada disso, pensava apenas em como Beto podia ter feito aquilo com ela, como ele a tinha abandonado.
Mas aquilo tudo estava caindo, ela tinha que ser rápida. Eleanor entrou no buraco onde estava o sarcófago e com muito esforço tirou o tampão que o fechava. Ali estava mumificado um homem, e como tudo na construção, tinha vestes inspiradas nas Antigüidades européia e indígena. Ela viu um enorme arco dourado à direita do corpo e um Maracá, uma espécie de cajado com uma cabaça no seu topo, à esquerda.
Eleanor não viu o Ídolo de Ouro e ficou desesperada, não era possível que depois de tudo que ela passara, depois de seu amor ter se sacrificado, ela não tivesse o Ídolo. “Não, calma, menina”, ela pensou consigo mesma, aquele lugar tinha sido construído para proteger o Uirapuru, ele não podia simplesmente não existir.
Foi quando ela olhou melhor o Maracá e viu que havia furos incomuns nele, ela rapidamente tirou-o do sarcófago e um som saiu do objeto, parecia algo mágico, um som limpo e encantador, algo que fez com que ela se revitalizasse e se esquecesse de todos os seus tormentos e mágoas, ampliando sua percepção das coisas; sim aquilo era o Uirapuru, aquilo era o Ídolo de Ouro.
Mas o tempo corria e, enquanto ela admirava o objeto, os discos de ouro das paredes caíram, revelando buracos na superfície, de onde começaram a jorrar terra, preenchendo rapidamente o local. Uma outra armadilha, pensou Eleanor, algo para não permitir que ela saísse de lá com o Ídolo.
Ela rapidamente subiu e viu que a passagem e agora quase tudo estava desmoronado, correu para a saída onde quase todas as armadilhas, que dificultaram sua entrada, estavam já destruídas. Uma vez de volta à floresta ela viu a construção ruindo por completo e se havia uma esperança de que Beto estivesse vivo, ela a abandonou agora.



Dr. Bourdeaux olhou para os agentes e se voltou novamente para Eleanor. Olhou para ela fixamente tentando captar alguma informação de suas expressões, mas ela estava tão desolada que ele não tirou nada. Assim ele perguntou:
- Você não está com o Ídolo. Por quê?
- Pelo motivo mais óbvio do mundo, ele não existe!
- Tem certeza que você procurou pelo vale inteiro, Mademoiselle?
- Esse é exatamente o problema!



Eleanor voltou à aldeia com o Uirapuru junto a ela. Quando ela chegou e mostrou o Ídolo todos os índios festejaram. Aquela selvageria e raiva que tinha visto antes foram transformadas em respeito e gratidão. Todos a trataram bem na aldeia e ela por ali ficou até que suas feridas fossem realmente curadas. O tempo que ela passou com os acritós a fez respeitá-los e até amá-los.
Fernanda Schimidt, a antropóloga que tinha ficado na aldeia, resolvera permanecer em definitivo com os Acritós. Ela tinha sido poupada por saber tocar flauta, ou como diziam os índios, Fernanda sabia falar a língua dos Deuses. Claro que Eleanor não entendia bem como a colega teria decidido ficar ali com aqueles selvagens, mas a arqueóloga se lembrou das aulas de Fernando sobre a diversidade de culturas e como nós rapidamente julgamos os povos que não entendemos. O tempo que ela passou com os acritós a fez respeitá-los e até amá-los.
Quando Eleanor se arrumou para partir a acritó Emanuaçu, sua antiga rival, se aproximou dela, como em uma despedida, a abraçou e tirou um colar que a própria índia mesma usava e deu-o a francesa. Eleanor sorriu e retribuiu o gesto entregando o chicote de Beto que ela pegara na saída do Templo. Sabia que, como uma guerreira, ela apreciaria ganhar uma arma.
O velho pajé Rarití se despediu dela, com muita felicidade, dizendo que sabia que ela era o Maramuzan, que ela traria o Uirapuru e curaria seu povo. Mas Eleanor sabia que o verdadeiro responsável por estar ali era o Beto, sabia que se alguém fosse o salvador da aldeia seria ele. E realmente ele havia salvado, a francesa não sabia como, mas realmente os índios foram curados do mal que os afligia e tudo estava bem agora com os acritós.
Maramuzan, que significava “aquele que traz a guerra”, combateu os maiores perigos daquele vale e morreu para trazer a paz aos acritós. Foi pela guerra que ele trouxe a paz, pensou Eleanor. Beto teve que lutar contra ele mesmo para vencer e ela se confortou pensando que se não estivesse ido até ele, naquele bar em Minas Gerais, os acritós teriam perecido também.
Assim ela se foi. Agora examinava o equipamento que Beto a entregara e viu que tinha sobrado dinamite. Eleanor pensou que talvez, se não tivesse se irritado com ele e visto que ainda tinha aquilo, ela poderia ter destruído aquela passagem e o salvado, mas não o fez e ela se sentiu mal com aquilo.
Entretanto ela daria um bom uso a aquele explosivo! Eleanor explodiu a saída do Vale; Beto estava certo, aquilo não podia ser conhecido por ninguém. Nenhuma pessoa de fora podia saber o que havia ali, os índios deveriam ser deixados em paz, como estavam. Ali ela se perguntou se ele tinha colocado aqueles explosivos de propósito para que ela selasse o Vale dos Acritós.


Novamente os agentes do GIGN se entreolharam. Eleanor olhou fixamente para eles e os agentes não mais reconheceram aquela jovem arqueóloga que foram buscar há alguns meses. Ela parecia uma veterana de guerra que acabou de chegar de um conflito, percebiam que ela escondia algo, mas não sabiam o que.
- O Vale não existe, Monsieur Bourdeaux! – disse ela.
- Como assim, nossos...
- Estão errados! Não há nada lá além de pedras, nem é um vale!
- Isso é uma infeliz notícia. Tudo o que foi gasto...
- E me fizeram perder tempo com isso!
- Pardon Mademoiselle LeBeau! Todo esse transtorno realmente...
- Tudo bem, foi apenas um contratempo, não importa mais, já terminaram?
- Sim, perfeitamente!
Eles se levantaram, não havia mais nada a ser dito, tudo aquilo não passava de uma perda de tempo e dinheiro público, e antes de partir Dr. Bourdeaux olhou para a mesa, algo lhe chamou a atenção e ele voltou a falar.
- Você esteve com o Dr. Vilela?
- Não, apenas com a filha dele, acho que se chama Vitória!
- Uma pena realmente, au revoir Mademoiselle LeBeau!
Eleanor não respondeu e eles partiram. Finalmente tinha acabado, ela agora podia estar em paz com seus pensamentos. A conversa com a filha de Beto ainda a perturbava. Claro que ela, antes de voltar à França, foi contar à coitada que seu pai morrera no Vale. Mas ela também confirmou suas suspeitas.
Quando Beto voltou ao Brasil ele se tornou político. Tão logo entrou no senado ele se viu à volta com políticos corruptos, juntou provas contra eles e os delatou. Um escândalo que parou o país. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito foi organizada e quando todos sabiam que os políticos corruptos cairiam Beto foi seqüestrado sem que ninguém percebesse.
Ele foi levado a algum local desconhecido onde sofreu severas ameaças e quando viram que ele não se dobraria, resolveram capturar sua mãe, a cantora Marielza, e a mataram queimada na sua frente. Prometeram que fariam o mesmo com sua filha se ele não recuasse. Depois disso Beto renunciou ao mandato e se retirou da vida pública. Isso tinha ocorrido cinco meses antes de ela encontrá-lo naquele bar no interior de Minas Gerais.
Eleanor desejava ter descoberto isso antes, sabia que era por isso que ele se entregara tão fácil no Templo, ele buscava morrer ali. Se não estivesse tão boba de paixão por ele perceberia que apenas algo como aquilo podia fazer com que o Beto se tornasse aquele homem de olhar vazio. Ela sentia raiva e uma frustração enormes, sentiu vontade de chorar, porém não chorou. Estava como que num estado de êxtase, inconsolável. A busca pelo Ídolo de Ouro tinha mudado algo nela.
Ela olhou para a mesa em que estava sentada, e então para o chapéu Cury que ela trazia consigo desde a despedida de Beto. Eleanor alisou o chapéu, um antigo sentimento insurgiu dentro dela. Como se sua antiga força e vontade voltassem, algo que a arqueóloga julgava estar esquecido, mas ela ainda se lembrava. Eleanor respirou fundo e colocou o chapéu...

O Início e o Fim.

Nota do Autor: O capítulo final se inicia igual ao primeiro capítulo, achei que seria muito bacana isso e dá um ar saudosista em voltar aonde tudo começou. Uma homenagem à própria estória que gostei tanto de escrever e vai com certeza deixar muitas saudades.
Aqui fecho todas as pontas soltas, explico como Eleanor resolveu o problema dos índios e todo o seu esforço para que o mundo exterior não destrua a sua cultura. Mais importante que estudar outras culturas é saber preservá-las e respeitá-las, assim ela é, ao meu ver, uma verdadeira arqueóloga e historiadora.
Explico melhor o que aconteceu com Fernando e como suas atitudes o levaram a ficar tão desolado e deprimido buscando apenas o seu próprio fim, não antes de resolver problemas pendentes.
Termino a estória novamente com a cena do chapéu, uma cena realmente marcante e que pode ser seu ponto mais alto.
Bem, quero terminar agradecendo a todos que acompanharam a estória até o fim, muito obrigado mesmo. Voltar a escrever tem sido uma experiência muito boa e os comentários feitos à minha estória têm me motivado muito a continuar, com certeza essa não será minha última estória e já estou, agora, produzindo outra de um tema muito diferente.
Obrigado e até a próxima oportunidade!

domingo, 19 de setembro de 2010

Capítulo VIII - Velho e o Novo

Eleanor acordou muito desorientada, mal sabia onde estava e as lembranças foram sendo recuperadas aos poucos. Lembrou do Ídolo, do Vale, da aldeia, do duelo e ela lembrou dele. Tentou se levantar, mas sentiu uma vertigem terrível e quase desmaiou de novo. No entanto, a arqueóloga se forçou a recuperar seus sentidos, pois sabia que tinha alguém muito próximo dela. Assim, um pouco melhor, virou-se para olhá-lo.
Então aquilo não era uma visão, ele realmente estava ali, ela mal podia acreditar naquilo. O amor de sua vida, que acreditava estar ainda em um boteco no interior de Minas Gerais, estava lá agora, estava lá para cuidar dela! Eleanor olhava admirando-o silenciosamente, ainda tentando provar para si mesma que ele estava lá.
Fernando estava ao seu lado, mascando uma erva que encontrara na mata, para colocar nas escoriações que estavam no corpo dela, fruto do duelo, além de outros ferimentos ainda não curados. Ao terminar, calmamente ele passou a pasta e cobriu usando folhas de bananeira como bandagem.
Ela não mais agüentou. Súbito se levantou agarrando intensamente Fernando e lhe dando um beijo, um beijo há muito tempo desejado. Não a recusou; curiosamente ao contrário dela, ele a ergueu levemente, com carinho extremo, provavelmente pela fragilidade que se encontrava, ou talvez até para acalmá-la.
Eleanor sentiu o tempo parar, o som dos pássaros não era mais ouvido, a dor de seu corpo não era mais sentida e suas preocupações não mais tinham importância. Tudo agora era aquele momento, todos os seus sentidos; passado e futuro perderam seu significado. O tempo passava como uma eternidade agora como se cada segundo fosse uma era...
Ela parou e olhou dentro dos olhos dele, e ainda sentia sua profunda tristeza, mas não importava. Ele a pôs em seu colo e acariciou seus cabelos também olhando nos olhos dela. Aquele olhar que tanto o encantava, e finalmente Fernando relaxou, deixando-se seduzir por aqueles lindos olhos verdes, e novamente a beijou.
Aquilo tudo tinha dado um novo vigor a Eleanor, ela agora se sentia bem o suficiente para enfrentar tudo, sempre trabalhava melhor quando estava apaixonada, costumava dizer. E era verdade, agora a francesa podia enfrentar tudo, os índios, o templo e aquele vale maldito, tudo! Finalmente ela falou:
- Obrigada por ter me ajudado, Dr. Jones!
Fernando sorriu para aquilo, Eleanor sempre foi brincalhona com ele e isso mostrava que estava bem, apesar de todas as privações que passara. Devia estar feliz por vê-lo com o chapéu Cury, pois isso mostrava que estava ali por ela, sabia disso.
Eleanor ainda não tinha percebido que o seu ombro esquerdo estava deslocado e ele deveria distraí-la para colocar no lugar novamente, já que isso iria provocar muita dor.
- Bem, você com essas pistolas, acho que eu deveria chamá-la daquela personagem de vídeo-game!
- Quem? A Lara Croft? Odeio esse...
Crack! Fernando colocou o braço no lugar. Ela tentou dar um berro por isso, mas ele segurou sua boca com as mãos, não podia deixar que os acritós a ouvissem, já foi difícil o suficiente entrar no meio deles e resgatá-la! Quando Eleanor se acalmou decidiu voltar a falar:
- Desculpe mon petite! Tinha que colocar seu braço no lugar.
- Tudo bem, Beto! – respondeu a moça massageando o ombro – Eu acho...
- Venha, não podemos demorar! Carter entrou na construção. Lá é tabu, os acritós não vão seguí-lo.
- O Mike entrou no templo? Droga!
- Não no templo, mas na construção que o protege, o verdadeiro templo é uma câmara secreta lá dentro.
- Então vamos Beto, eu já estou melhor.
Fernando se arrumou, pegou tudo que precisava e deu uma parte de seu equipamento para Eleanor. Tinha vontade de carregar tudo, sabia que ela não estava bem ainda, mas também sabia que sua aluna não aceitaria isso.
Ela olhou para o pouco que Beto tinha entregado e entendeu que a tinha poupado de carregar mais peso. Pensou em reclamar, mas gostou de saber que ele se preocupava. Eleanor também reparou que seu amado tinha algo embrulhado com um pano na sua mochila, parecia uma arma do jeito que estava, mas não perguntou o que era.
Assim, ele começou a caminhar de volta às entradas da construção, sempre tendo cuidado para não cair em uma armadilha. Ao examinar um local, no caminho, Fernando encontrou algo que não devia estar ali.
Um pedaço de vestido estava entre as folhas. Ele reconheceu na hora de quem era àquela roupa Logo suas mãos começaram a tremer e Beto sentiu uma tontura. Lembrou do cheiro e da carne estalando nas chamas. Aquilo estava errado, não havia lógica. Sim, era uma alucinação. As sombras de seu passado ainda o estavam perseguindo. Tinha que se controlar, não podia deixar que sua loucura matasse Eleanor.
Fechou os olhos, respirou fundo e olhou de novo. Não havia nada lá, o pedaço do vestido desaparecera. Beto se acalmou, não podia permitir que Eleanor percebesse que estava tão mal, não queria admitir isso, não podia. Sabia que ele era a base pra ela, se soubesse que estava mal, sua amada cairia também. Sim, sua amada. Aquilo não soava mais estranho e por isso mesmo ficou quieto e continuou o caminho.
Logo chegaram às entradas da construção novamente. Beto se aproximou do meio das passagens, analisando. Eleanor observou que havia uma inscrição e não entendia a língua em que estava escrita. Na verdade reconhecia algumas letras no antigo alfabeto de biblos, usado pelos fenícios; mas sua disposição estava estranha. Finalmente Eleanor perguntou:
- Você sabe o que está escrito?
- Que nada pode ser tirado daqui sem dar algo em troca.
- Hum, tudo tem um preço!
- Sim, Petite. Tudo tem seu preço.
Fernando a chamou de pequena novamente e ela, embora achasse aquilo amável, queria que ele a chamasse de outra forma. De petite amie, de namorada, mas embora Eleanor desejasse muito isso, sabia do profundo carinho que sentia ao chamá-la assim. Então disse:
- Beto? Por onde entraremos?
- A entrada está aberta, foi por onde Mike passou.
Eles se prepararam para entrar. Fernando entregou uma lanterna para Eleanor, para que o ajudasse, e verificou sua arma. A jovem arqueóloga fez o mesmo e olhou sorrindo para a arma dele, um revólver Rossi 851. A mesma arma que sabia que ele tinha desde o inicio de sua carreira, sabia que era algo emocional, mas não sabia ao certo o que. Ela então falou:
- Ainda com essa arma antiga, quantos tiros ela dá? Seis?
- Mais do que suficiente para derrubar qualquer coisa que se mova!
- Sei, claro! Então vamos fazer isso mesmo? Realmente vamos entrar e desvendar o maior mistério desse lugar!
- I dare do all that may become a man! Who dares more is none…
Uma frase da peça Macbeth de William Shakespeare que pode ser traduzida como “Ouso tudo o que convém a um homem. Quem ousaria mais”. Dito isso Fernando se virou para a entrada.
A passagem era escura, sua aparência denunciava tudo o que fora se formando pelo tempo. Sussurros ecoavam por todo o interior, de onde uma brisa gelada causava calafrios nos dois arqueólogos. Há séculos aquilo estava assim, quieto nas sombras, a não ser por eles agora e antes por Mike.
Com alguns passos Eleanor parou e começou a examinar o chão. Era feito de pedras, como paralelepípedos, bem grandes e sem forma definida um do outro. Havia certa dificuldade em observá-los porque estavam cheios de terra e trepadeiras por cima. No entanto se tornava mais fácil ver algumas pegadas de Mike, mas como ela não era rastreadora, não podia dizer ao certo.
Fernando olhava as paredes em volta. Eram esculpidas em pedra, a qual o tempo ainda não destruíra totalmente. Mostrava os cultos e sacrifícios, os quais haviam sido talvez, a função desse local, há muito tempo. Estranhando a demora dela em examinar o chão, ele resolveu quebrar o silêncio e perguntar:
- Algum problema LeBeau?
- Não sei, há alguma armadilha aqui, mas não acho!
Ele olhou atentamente para o local, vira que Eleanor examinava bem o chão, assim Fernando voltou a fitar em volta. Sabia que a falta de experiência dela fazia com que ela se fixasse em apenas num ponto, não vendo o plano geral, porém nada havia lá. Pensou se Mike havia desarmado, já que ele passara, mas também não. Assim, avançando mais um pouco, descobriu.
- É isso! – disse Fernando – Você não viu nada porque a armadilha é o próprio chão!
- Um chão falso, um fosso? Claro, por isso o Mike não desarmou, não tem como!
- Ou isso, ou ele queria que a gente caísse.
- Até eu posso ver alguns rastros dele, é só a gente seguir.
- Os rastros somem ali, quero saber o porquê!
Assim, Fernando pegou sua faca e começou a demarcar qual era a extensão do chão falso. Eleanor se afastou e ficou atenta a tudo, se algo se mexesse era porque ele tinha disparado a armadilha e, preparada, ela tinha mais chances de resgatá-lo, mas nada ocorreu.
- Pronto! Temos que passar por aquela passarela rente à parede, foi assim que aquele estadunidense passou.
- Claro! Por isso você não viu o rastro, vamos então.
Apoiados na passarela eles passaram do lado do fosso, não desarmando-o e nem caindo nele. Isso foi uma tarefa relativamente fácil. Entretanto Eleanor não parava de pensar que estava ali para saquear algo que se encontrava em paz naquele lugar há muito tempo, se sentia como uma ladra ou algo assim. Fernando conhecia bem aquela sensação, já se acostumara com isso. Sabia que estava recuperando aquilo para estudar e conservar, mas dessa vez seria diferente.
Do outro lado da armadilha, tão logo iam caminhando, encontraram outro fosso falso, mas este estava aberto, como se alguém tivesse disparado a armadilha. Eleanor iluminou o fundo com sua lanterna e deu um grito! O fundo estava cheio de estacas e Mike tinha caído nele. Sendo perfurado por quatros estacas, o arqueólogo estadunidense não mais tinha vida. Vendo tudo aquilo, e mais acostumado com esse tipo de situação, Fernando falou:
- Como eu disse, ele não passava de ladrão de tumbas simples!
Eleanor olhou chocada para ele, achou um absurdo ser tão frio assim! Ela odiava o Mike, principalmente por ter feito sua amiga, Fabienne, sofrer tanto por sua causa, entretanto nunca havia desejado que morresse daquela forma, em uma armadilha de um vale esquecido pelo tempo. Era uma morte horrível que Eleanor não desejaria ter, porém quando ainda olhava para o corpo morto, Fernando voltou a falar:
- A armadilha fez a passarela deslizar também! Vamos ter que arrumar outro jeito de passar
- O quê? Ah! Sim, claro. Como?
- Aquela escultura no teto vai nos ajudar!
Havia a estátua de uma mulher sem pernas, como que viesse dos céus. Fernando a conhecia como a lenda indígena de Anabanéri. Uma emissária do Deus Tupã que viaja nos sonhos. A imagem estava bem acima do fosso e assim ele pegou seu chicote e golpeou a estátua de forma que a arma ficasse presa e ambos pudessem se balançar para o outro lado.
Vendo que realmente estava firme, pegou Eleanor nos braços e saltou com o chicote até o outro lado do fosso. Prendeu o cabo do chicote em um entalhe na parede para que depois ela pudesse voltar, decidiu continuar.
A sala terminava ali, tinha uma passagem à esquerda que era a única forma de prosseguir. Uma outra sala, também com chão de pedras, mas esta tinha as pedras todas quadradas e alinhadas perfeitamente. Uma cinza e a outra negra, colocada uma ao lado da outra, em um grande quadrado, como em um jogo de xadrez. Da forma que ele estava vendo, era de quatro colunas por seis linhas. Fernando sabia que aquilo compunha outra armadilha e sabia que tinha que desvendá-la.
- Cada pedra tem um metro, acho que é para passarmos uma por uma, Beto!
- Sim, mas qual é a certa? Não há nada que indique!
- Talvez aquilo indicasse! – disse Eleanor apontando para desenhos indecifráveis na parede. – Parece até um mapa!
- Sim, Petite! Mas está apagada pelo tempo.
- Então vamos ter que confiar em sua perícia, mon amour!
Fernando olhou para ela, achando estranha a forma que se referia a ele. Mas havia gostado daquilo, no fundo. Acariciou os lindos cabelos negros dela e Eleanor lhe deu um suave beijo.
Depois perguntou a ela:
- Por que isso agora?
- Para dar sorte!
Eleanor sorriu e ele se concentrou na tarefa. Como aquilo era algo mais delicado que o fosso por onde passaram! Fernando tirou uma pequena escova, que os arqueólogos usavam para tirar o pó de uma relíquia recém-encontrada. Então removeu toda a sujeira da primeira linha e com a ajuda de uma espátula foi tirando o decalque entre as pedras. Assim pôde claramente ver que as pedras pretas tinham maior profundidade em sua base, ou seja, era nelas que ele devia pisar.
- Então são as pedras pretas? Vamos seguir então!
Falando isso Eleanor prosseguiu, pisando na pedra negra da outra fileira e subitamente caiu. Fernando tentou se esforçar para pegá-la sem se desequilibrar, mas não conseguiu. Assim, com ela agarrada em seus braços, saltou rapidamente para uma pedra cinza ao lado da que sua amada caíra, sabendo que esta deveria estar firme, e realmente estava.
Após o susto ele falou.
- Não, linda! Apenas na primeira linha, vamos ter que averiguar em todas!
E assim foi feito. Linha por linha era analisada, realmente a cor das pedras firmes mudava com o decorrer do trajeto, sem nenhuma ordem lógica. Isso demorou muito e foi bem estressante. Ao passar totalmente pelo corredor de lajotas, havia uma passagem aberta e visivelmente uma outra, espécie de portal de pedra fechado.
Apontando para esse portal, Fernando disse:
- Aqui está o verdadeiro templo, um sarcófago na realidade.
- Como vamos abrir, Beto? É algum mecanismo secreto eu suponho!
- Sim! Mas disso eu cuido, ele fica aberto por pouco tempo, é você que vai entrar e buscar o Ídolo de Ouro.
Na parede adjacente ao portal, havia a estátua de um guerreiro de pedra, que misturava indumentárias da Antigüidade européia e indígena. Fernando teve uma estranha sensação ao ver a escultura, era como se ela também o olhasse. Ele se aproximou dela, e quanto mais próximo chegava, maior era a vertigem que sentia.
Tão logo, Fernando começou a ouvir um som estranho no lugar, como se alguém estivesse cantarolando. Olhou para a passagem aberta e viu o vulto de uma linda mulher de vestido passando rapidamente! Seguiu a sombra e pode ver nitidamente sua amada mãe. Ela se virou para ele com tristeza no olhar e simplesmente pegou fogo!
Fernando começou a tremer, a vertigem aumentou e por pouco o arqueólogo não desmaiou.
Eleanor, ao vê-lo cair, tentou segurá-lo rapidamente. O pôs sentado e percebeu que ele tremia muito. Segurou suas mãos, depois de acalmá-lo, imaginando que poderia estar de alguma forma debilitado, provavelmente pela falta da bebida, e se fosse isso; não saberia como ajudar.
Nunca tinha visto alguém naquele estado em toda sua vida. Ela o conhecia bem, sabia que Beto não demonstrava fraqueza, sentou-se também e decidiu que o esperaria se recuperar sem perguntar nada. Ao invés disso, embora muito preocupada, desviou do assunto falando:
- Nossa, como eu sinto falta de música aqui!
Fernando reagiu a isso sorrindo, já estava melhor. Olhou em volta, os fantasmas de seu passado já não estavam mais ali. Tentou reavaliar como ia fazer tudo aquilo, sabia que não haveria outra forma de realizá-lo, teve medo, mas ao olhar para ela foi preenchido de coragem novamente. A olhou com ternura, pois Eleanor era tudo que ele esperava de uma arqueóloga, não via a si nela, sua antiga aluna era diferente e era disso o que gostava nela. Aquela mulher mostrava que ela tinha uma personalidade forte, iria trilhar seu caminho pelos próprios pés, não seria uma mera sombra dele.
Pensando no que lhe falou, finalmente disse:
- A música cria para nós um passado que ignorávamos e desperta em nós tristezas que tinham sido dissimuladas às nossas lágrimas!
- Hum, isso é Oscar Wilde, não?
Ele olhou para ela admirado e Eleanor retribuiu com um sorriso. Sentiu a tristeza da frase, não tinha como não perceber, mas lembrou-se que a mãe de Fernando era cantora e feliz com aquela recordação perguntou:
- Sua mãe era cantora, não? O que ela cantava mesmo?
O velho arqueólogo se lembrou do pesadelo que o acompanhava e curvou-se, sua expressão mudou drasticamente. Era como se tivesse recebido uma facada, um golpe inesperado. Foi então que finalmente Eleanor ligou os pontos. Era por isso, ela pensou, por isso que ele estava naquele estado quando eles se reencontraram em Minas Gerais, agora tudo fazia sentido.
Compelida por uma imensa dor, ela foi aos braços de Fernando e após o beijar disse:
- Desculpe Beto, eu ainda não...
- Tudo bem, Eleanor! – Interrompeu ele continuando.
- Não tinha como você saber, está tudo bem! Vamos deixar isso de lado. Temos o pior desse lugar para enfrentar agora!
Fernando se levantou, a pôs de pé e arrumou suas coisas. A jovem apaixonada ainda o olhava com extrema pena e ternura, sabia disso, mas como ele mesmo disse, o pior estava por vir, e sorriu tentando tranqüilizá-la. Aproximou-se de Eleanor, tirou seu chapéu Cury colocando nela, e a beijou novamente. A levou firmemente com muita intensidade. Ela sentiu nitidamente toda a profundidade dos sentimentos dele nesse beijo, como se fosse algo muito importante.
- Fique aqui mon petite. – disse Fernando – Eu vou continuar e abrir a passagem. Tenha cuidado!
- Sim, vou ter! Tenha você também, mon amour!
Fernando a deixou, sentia que ele deveria explicar para ela o que iria acontecer, mas não o fez. Se ele assim o fizesse Eleanor não iria aceitar, sabia disso e a sobrevivência de um povo dependia deles.
A deixou e entrou temerariamente na passagem sabendo que encontraria ali o que viera procurar, encontraria seu destino como foi advertido pela Iara. Ao entrar, ele acendeu uma tocha que estava na entrada, e o lugar se iluminou de tal forma que até Eleanor, do corredor, pôde ver o que estava ali.
Era uma câmara realmente enorme. Tinha toda a parede e teto entalhados, um grande poço de água negra no centro, duas enormes estátuas próximas a um altar. Este era magnificamente todo dourado, provavelmente feito de ouro puro. Possuía a imagem de uma cabeça de onça-pintada, envolta por luz solar e em frente a esta uma escadaria com uma formação retangular onde provavelmente eram feitos sacrifícios em homenagem ao desconhecido Deus Onça.
Quando Eleanor ainda estava admirada com aquilo tudo, Fernando notou uma outra passagem, que pela posição que estava, provavelmente ligava a entrada do templo de alguma forma. Ele olhou para ela, averiguando se tinha entrado na sala, mas a francesa estava apenas no corredor da passagem, assim o velho arqueólogo cuidadosamente se aproximou do altar, subindo bem devagar pelas escadas e ficando à frente da imagem do Deus Onça.
Assim que subiu pelas escadas, Eleanor notou que a água negra do poço reagiu, como se tivesse algo lá. Ela sacou suas 5.7 e se preparou caso algo acontecesse. Não entraria na sala como Beto pediu, mas se algo o atacasse ela não hesitaria em atirar, tudo aquilo era muito estranho, a jovem arqueóloga tinha um péssimo pressentimento, sabia que havia algo errado!
Fernando, de frente à imagem, tirou o colar que tinha pegado no barco da ilha. Viu que ele se encaixava perfeitamente na boca da “onça” e, depois de olhar uma última vez para Eleanor, ele colocou o colar onde devia. A imagem reagiu a aquilo, e moveu a “boca” engolindo o colar. Subitamente, a construção começou a tremer, realmente o portal do templo/sarcófago começou a se abrir.
Eleanor viu o olhar que ele deu a ela e sentiu um calafrio, algo estava errado. Sentiu quando tudo começou a tremer, viu o portal se abrindo, mas ao dirigir-se a ele também notou que a passagem que dava para a enorme sala estava se fechando e assim finalmente entendeu. Agora sabia porque Fernando a beijou daquele jeito, o porquê daquele olhar. Ele iria se sacrificar, pela aldeia, por ela.
- Não faça isso comigo, Beto! – Ela gritou.
- Não há outra forma, tudo tem preço!
- Vamos dar outro jeito!
- Não há nada para mim agora Eleanor, já causei mal demais!
- Você tem a mim!
Não houve tempo, a parede se fechou e Eleanor não pôde ser mais ouvida. Fernando jogou todo seu equipamento no chão. Não precisava mais dele, apenas do embrulho que estava em sua mochila, e retirou dele sua antiga escopeta Winchester. Carregando-a, desceu as escadarias caminhando em direção ao poço, que borbulhava naquele momento.
Uma hedionda criatura emergiu do poço e Fernando sabia que era o guardião desse lugar. A besta possuía o corpo todo branco, como um verme gigantesco sem olhos, apenas com uma horrenda boca cheia de dentes afiados como navalhas. Saía uma fumaça dela, dando ao ar um cheiro nauseante e turvando a visão do velho arqueólogo.
Sem aviso ele engatilhou a arma e atirou no monstro que empinou para trás com o impacto, mas essa foi sua única reação. De tão duro que era seu couro, a bala não perfurou sua carne. Fernando sabia que não havia como vencer aquilo, sabia que ali encontraria finalmente o que procurava, sabia que encontraria seu destino. Mas isso não o deteve, e ele engatilhou a arma novamente, atirou e disse:
- Não será tão fácil assim, demônio!
A criatura abriu sua asquerosa boca da qual escorria uma saliva tão negra como o líquido ao redor. O cheiro que saía de suas entranhas era ainda mais nauseante. Ela urrou e soltou uma espécie de baforada contra Fernando que antes do fim não viu sua vida inteira passar. Apenas lembrou-se de uma graphic novel que tinha lido em sua juventude, e uma frase de como a obra terminava.

“O velho morre, a jovem vive. É uma troca justa”.




Nota do Autor: O capítulo mais importante, todos os outros na verdade rumam para esse, finalmente sabemos o que tem no Templo e finalmente vem o desfecho de toda a estória.
O momento mais esperado talvez seja o reencontro de Eleanor e Fernando e eu tentei deixar da maneira mais singela e romântica que a estória me permitia, assim pude suavizar um pouco a carga que o final traria e aumentar ainda mais sua tragédia, o que acredito que tenha sido feito.
A arquitetura do templo vem do Desafio dos Bandeirantes e meu trabalho foi apenas dar vida a aquilo e mostrar como Fernando e Eleanor trabalham como arqueólogos. Muitos se sentirão no Templo da Amazônia do filme, Caçadores da Arca Perdida ou mesmo no final de A Última Cruzada e isso é muito bom.
O monstro no fim é uma antiga e sempre presente lenda brasileira. Há muitas lendas de cobras gigantes, Boitatá, Boiúna e não apenas no Brasil, já que há lendas dessas criaturas, de seres serpentários, na mitologia nórdica, japonesa, babilônica ou asteca, por exemplo. O que aparece na estória é o Minhocão, uma espécie de verme gigante capaz de cuspir piche pelas entranhas. Geralmente, como o Boitatá ele guarda um grande tesouro não permitindo que os fracos o retirem de seu santuário.
Há muitas citações aqui, algumas que talvez vocês nem percebam, sempre tento mostrar a erudição de Fernando dessa forma, já que eu obviamente não entendo do trabalho dele como ele mesmo, é apenas um recurso de escrita e espero que não tenha exagerado nele!
Gostei muito que no fim ele cite uma obra de história em quadrinhos, algo que ele leu por puro desprendimento e prazer e não uma das grandes obras. Isso deu um toque mais singelo e realmente acho que no fim apenas lembramos de coisas simples. A obra é de Frank Miller chamada O Assassino Amarelo do arco de estórias da série Sin City.

domingo, 5 de setembro de 2010

Capítulo VII - Duelo de Amazonas

Eleanor apontava a arma para o que já era um vulto. Apenas uma das pistolas estava fora do coldre. Um reflexo de auto-preservação ao qual estava tão acostumada a seguir a fazia agir por instinto, pois, cansada como estava, ela não mais raciocinava direito. Olhou firmemente para o vulto e gritou:
- Quem está aí, apareça ou eu atiro!
- Hihihi, eu saber você, Eleanor! – respondeu o vulto.
Sem que soubesse, outra pessoa vinha por trás dela. Rapidamente foi agarrada, a arma que estava em sua mão arrancada e Eleanor jogada no chão. Por um tempo ficou caída e de costas para o homem que estava por cima dela, tentando imobilizá-la; porém, conseguiu virar-se com velocidade, assustando seu agressor e retirando sua outra 5.7 do coldre.
- Enough! – disse uma voz que ela reconheceu. – Não quero que vocês a machuca!
Ela quase não acreditava, então era verdade, era realmente verdade! Alex Michael Carter realmente estava ali. Eleanor não o via desde Paris e na realidade não queria vê-lo de novo, mas não podia negar como aquilo era oportuno. Agora tinha que descobrir uma forma de tirar o Ídolo dele e dar um jeito para que ninguém mais incomodasse aquele lugar.
Sim! Tinha uma tarefa quase impossível.
Enquanto pensava, mais homens saíam da mata, eram sete fora Alex! Homens da expedição dele. Alguns machucados e todos já apresentando cansaço pela demanda. Muito armados, pareciam mais jagunços do que arqueólogos, apenas o estadunidense estava com boa aparência, como sempre.
Eleanor o encarou, enquanto se levantava. Tinha esquecido de como ele era bonito. Um alto homem loiro, de olhos verdes. Tinha o corpo de um atleta e realmente era, já que acreditava que isso facilitaria seu trabalho. Era um homem extremamente sedutor quando queria. O sonho das moças da faculdade, quando eram jovens. Tinha um sorriso cativante, e foi com o mesmo que ele começou a falar.
- My Pretty! How you doin?
- Como eu estou? Vá pro inferno, Mike!
- Português? Achei iria poderia falar em minha...
- Chega de papo inútil, cadê o Ídolo?
- Uirapuru? Não comigo!
- Não? – por isso Eleanor não esperava, Mike já estava ali há um bom tempo, como podia não ter encontrado o Ídolo ainda? Será que era uma mentira? Se fosse, por que não fora embora ainda? Teria sido ele quem atacou a aldeia? Eram muitas perguntas para responder, elas precisavam de respostas, e achou melhor começar pela mais simples. – Por que você ainda não está com o Ídolo?
- Easy question, eu ainda não acho o Templo!
- Ainda não, absurdo! Entregue-me o Ídolo!
- Listen, Pretty, muitas armadilhas, eu perder trackers aqui!
Perdeu os rastreadores? – repetiu ela. Estava confusa e repetia o que Michael falava; aquilo a estava incomodando. Lembrou-se do que Beto a dissera naquele boteco em Minas Gerais. Você adquiriu a incrível habilidade de perceber o óbvio! Tentou afastar esse pensamento e perguntou mais para si mesma que para o estadunidense – Como vamos fazer para achar então?
Falando isso, ela guardou as pistolas. Todos da expedição se acalmaram com esse gesto. Eleanor era pequena, mas bem ameaçadora quando queria. Mike se aproximou dela, olhando bem em seus olhos, tentando perturbá-la. Ao ver que não conseguira, começou a falar:
- Sabe, eu não saber o Templo aqui, seria grande ajuda!
- Sei, seria mesmo? Não tem o templo no mapa do diário?
Eleanor sabia que ele estava tentando agradá-la. Mas Mike não sabia como ela conhecia o mapa do diário de Luiz Gaspar de Lemos e Correia, do séc XVII. Sim, é claro, só podia ter falado com o Fernando! Mike o tinha encontrado, mas isso de nada adiantou. Claro, era isso!
- Você esteve com Teacher Vilela?
- Isso importa? Sei que tem um mapa, Mike!
- É um mapa sem... well, words!
- Sem palavras? Deixe-me ver!
Mike mostrou o mapa para ela, e realmente a falta de palavras dificultava muito, pois nenhuma localização no mapa tinha nome, mas a visão acurada de Eleanor lhe mostrara onde o Templo estava logo quando saiu da entrada da caverna. Aquilo era um bom palpite.
- Onde estamos agora?
- Here – respondeu Mike apontando no mapa.
- Ótimo, devemos seguir por ali então!
Assim eles partiram, seguindo pelo caminho indicado por Eleanor. Era um longo trajeto, pois os nove iam lentamente, por causa do cansaço e por medo que os índios os achassem. A mata era muito escura, cheia de sons estranhos e exóticos; ambos, Mike e Eleanor, não tinham estado em uma floresta brasileira antes, tudo era novo para eles.
Não demorou muito e um dos membros da expedição foi acertado por uma flecha, inicialmente todos pensavam estar sob um ataque dos acritós, mas como outras não vieram, julgaram ser uma armadilha. De fato, mais dois membros da expedição caíram em outras armadilhas até anoitecer.
Pararam para finalmente descansar; todos estavam exaustos, pelos mortos, e por mais que estivessem sendo guiados pelo mapa, sentiam sempre que estavam perdidos.
Acharam uma clareira que julgaram ser boa para dormir. Comeram a pouca comida que tinham em suas mochilas. Ninguém se arriscava a procurar por frutas em um lugar com tantas armadilhas e ainda havia os indígenas; todos sempre tinham a sensação de estarem sendo seguidos.
Um esquema de turnos foi criado para que todos pudessem dormir, e estes, um por vez, vigiavam enquanto os outros dormiam. Esse esquema funcionou muito bem, não houve problema até que, bem de madrugada, todos foram acordados por um grito desesperado daquele que estava vigiando naquele momento.
Eleanor acordou e rapidamente sacou as pistolas, seus reflexos não estavam totalmente recuperados, a cabeça ainda doía e desde a briga com a Emanuaçu ela escutava um zumbido agudo. Mas já de pé, viu o homem que estava de vigia sendo arrastado, morto por alguma coisa, ela se aproximou e Mike ligou a lanterna sobre o companheiro.
Aquilo era quase lindo de se ver, quase. O que tinha atacado o homem era uma enorme onça pintada que arrastava o desgraçado e se movimentava silenciosamente, até parar, com a luz sobre ela. Era o animal mais lindo que a francesa já tinha visto, mas sua aparência ficou quase demoníaca quando a luz refletida em seus olhos brilhava em vermelho.
Quase hipnotizada, Eleanor se lembrou da lenda do anhangá, um espírito maligno que se incorpora em animais selvagens deixando seus olhos vermelhos como naquele momento. Sim, toda lenda tinha um porquê e toda lenda possuía uma dose de verdade, ela agora entendia porque os indígenas imaginaram essa mitologia. Apenas luz refletida em seus olhos.
Firmemente, enquanto os outros ainda estavam maravilhados, Eleanor atirou na onça pintada, que embora houvesse levado o tiro, não recuou. Ficou firme encarando ameaçadoramente a arqueóloga. Assim ela efetuou mais três disparos certeiros antes que o animal pudesse sequer reagir e a matou finalmente.
Então disse:
- Vamos enterrar a onça também!
Todos olharam com grande estranhamento para ela, mas a moça sem se importar continuou falando:
- Já vi muitas coisas estranhas nesse Vale! Enterrem o animal.
Depois disso ninguém conseguiu dormir mais. Logo que os primeiros raios de luz surgiram no leste, todos começaram a arrumar suas coisas em silêncio, se preparando para partir. Mike se aproximou de Eleanor, e passando a mão em seu cabelo disse:
- Sabe, é bom você estar aqui, now!
- Se você encostar de novo em mim Mike, vai se arrepender!
- Take it easy, Pretty!
- Eu lembro muito bem o que você fez a Fabienne!
Ela deu as costas a ele, e rapidamente começou a caminhar novamente, o Templo, segundo ela, não estava longe e antes do sol atingir o topo eles chegariam lá. Sim, Eleanor pensou, mas ainda não sabia como iria tirar o Ídolo deles, eram cinco ao todo agora, e estavam muito mais cautelosos.
Os perigos da mata iriam além dos criados pelos acritós aquela noite, todos sabiam disso, agora era como se a floresta estivesse reagindo a eles, como se quisesse impedir que eles encontrassem o Templo. Aquele pensamento os perturbava e ainda havia aquela sensação de estarem sendo seguidos.
Mas todos os temores se foram quando eles viram finalmente o Templo. Era uma estranha construção que já estava parcialmente coberta pela floresta. A felicidade alcançou a todos eles, estavam ali, depois de tudo pelo que passaram, estavam finalmente ali. Apenas Eleanor estava séria, sabia que um Templo como aquele deveria ser difícil de dobrar; câmaras, armadilhas e vários riscos eram escondidos por aquela indefinível arquitetura.
O Templo era feito de pedra e devia ter pouco mais de dez metros de altura, tinha um grande rosto esculpido no alto que as deformidades provocadas pelo tempo e as trepadeiras dificultavam sua visão. Havia duas entradas, uma do lado da outra, de três metros e meio de altura. Ao se aproximarem da entrada da direita, uma espécie de urro bestial foi ouvido vindo de lá de dentro e gelou a espinha de todos.
Mike, rapidamente, pegou o diário e mostrou para Eleanor a única passagem em que Lemos e Correia falava sobre o Templo no diário:

“Foi quando vimos uma estranha construção. Nos aproximamos e vimos que era um templo antigo. Ali! Ali deve estar o tesouro perdido que nos trouxe a este maldito lugar! Porém, quando íamos nos aproximar mais, surgiu um acritó que bradou para que voltássemos, afirmando ser aquele templo tabu, um lugar de morte guardado por um ser terrível. Resolvemos voltar para não termos problemas, mas eu e Maria estamos determinados a voltar lá essa noite”.

Era muito difícil para ambos os arqueólogos traduzirem o diário, pois além da letra existia o problema com a língua. Claro que sabiam falar português, mas o idioma mudou muito do período seicentista até os dias de hoje. Pouca coisa conseguiam decifrar dos escritos e ela se lembrou de Beto mais uma vez. Claro que seu amado professor faria esse trabalho facilmente, mas ele não estava lá. Teria que fazer sozinha e na verdade imaginou que estava fazendo um ótimo trabalho considerando as circunstâncias. Assim, continuou decifrando:

“Louvado seja o Senhor por nos poupar de nossas tolices! Nós vimos a (...) Ela nos viu, quando nos aproximávamos sorrateiramente do Templo durante a noite. (...) e emitiu um urro rouco que me gelou até a medula. Maria e eu corremos sem parar até cairmos de exaustão. Quase desmaiado, entreguei minha alma a Nosso Senhor, mas a criatura não nos seguiu. Louvado seja o Senhor!”

Quando Eleanor ainda analisava o diário, quase não percebeu uma flecha atingindo um membro da expedição. Ninguém mais percebeu enquanto ela tirava suas pistolas e o corpo já morto do homem caía. Pensou em berrar, mas mais flechas vinham, mais homens caíam mortos antes que eles percebessem o que lhes ocorrera. Como sempre, pensou, o ataque dos acritós era perfeito.
Novamente se embrenhou no mato, procurando cobertura até que um dos indígenas apareceu na sua frente. Não, dessa vez ela pensou e atirou nele. Porém ele não parou, ela se lembrou daquela onça e viu a determinação dela no índio, então recuou e começou a disparar suas pistolas contra o acritó, até conseguir matá-lo.
Mais índios foram se aproximando dela, e Eleanor foi descarregando os pentes de suas pistolas neles, derrubando-os até que suas balas acabaram. Tentando recarregar rápido suas armas, escutou um grito, não de dor, mas de ordem. Os acritós se afastaram e ela viu Emanuaçu se aproximar.
As duas se olharam, nenhuma mostrou medo à outra. Elas ficaram andando em círculo, estudando uma à outra com tanta intensidade que ambas ficaram alheias ao que estava acontecendo em sua volta. As duas guerreiras eram admiradas pelos demais acritós, que sequer ousavam intervir.
Emanuaçu jogou o arco e sua aljava no chão, de forma bem declarada, para mostrar que queria enfrentar sua oponente desarmada. Eleanor, embora soubesse que tinha mais chances com suas pistolas, também colocou suas armas no chão, sentiu que devia fazer isso, por honra talvez. Mas na verdade também queria derrotar a acritó no jogo dela!
- Você quer me pegar, não é? – disse Eleanor. – Não vai ser tão fácil dessa vez, posso te garantir isso!
Emanuaçu sorriu, entendeu que fora desafiada e cumprimentou honradamente a oponente. Eleanor retribuiu, criando coragem para si mesma, ela estava com medo, mas lembrou-se de uma vez que Fernando tinha lhe dito que coragem não é simplesmente não ter medo, isso é inconseqüência. Coragem é ter medo e enfrentá-lo, e munida dessa coragem ela atacou a indígena.
Em um golpe de extrema rapidez, que surpreendeu a todos os que estavam assistindo, Eleanor socou firme o rosto de Emanuaçu, que pela velocidade não conseguiu se esquivar. O golpe a pegou em cheio quase a derrubando, obrigando-a a se afastar rapidamente da francesa, para não ser golpeada novamente.
No entanto, Eleanor não avançou, ficou igualmente surpresa com aquilo, ela era treinada em várias lutas, sabia manejar as pistolas e algumas outras armas, mas nunca tinha posto tanto aquilo em prática até aquele maldito Vale. Ela nunca havia sequer atirado em alguém, quanto mais ter que brigar com as próprias mãos contra alguém que certamente era especialista nisso. Alguém que a fazia parecer ainda menor e frágil, mas como um Davi bíblico tinha quase derrubado o seu algoz, seu Golias.
Agora a índia estava mais esperta, não iria voltar a subestimar sua oponente, andava em volta de Eleanor estudando-a calmamente, e esta se admirava por ver Emanuaçu caminhando como uma onça pronta para dar o bote, lenta, mas de passos firmes e decididos. E realmente foi como em um bote que rapidamente a acritó se aproximou, a atacando finalmente.
Emanuaçu agarrou as pernas da arqueóloga, abaixando-se para isso, e com um impulso ela golpeou a sua barriga com os ombros tentando desequilibrá-la. Mas Eleanor agarrou a índia pelas costas e não se deixou cair, pelo contrário! Quase desequilibrou a acritó, que foi forçada a se ajoelhar com uma das pernas para não cair e, aproveitando o pequeno tamanho da francesa, a guerreira indígena passou uma das mãos por entre as pernas dela, erguendo-a e a jogando contra o chão.
Entretanto, Eleanor percebeu o movimento e tentou aparar sua queda como pôde; não teve muito sucesso, mas evitou que caísse de cabeça no chão! Agora as duas estavam engalfinhadas, uma tentando obter uma posição mais favorável que a de sua oponente, tentando dominá-la.
Os acritós que assistiam ao duelo estavam adorando, nunca tinham visto um combate tão difícil para um deles. Cobiçavam Eleanor por isso, já que como acreditavam fielmente na vitória de sua guerreira, sabiam que absorveriam as habilidades da derrotada no ritual antropofágico. Mas receavam que ela seria disputada por toda a tribo!
Ao perceber como era difícil dominar aquela pequena e ágil mulher, Emanuaçu soltou um urro tão aterrorizador que até os pássaros fugiram de medo, e foi ouvido por todos que ali estavam. Se tinha algum índio que ainda não acompanhava o combate, sua atenção foi despertada agora. Elas lutavam como dois felinos, uma onça e uma jaguatirica, imaginaram os acritós.
Eleanor entendera aquilo como um momento de distração e desespero e velozmente puxou um dos braços da acritó fazendo-a cair de costas para o chão e colocando a si mesma em cima de sua oponente, sentando-se em sua barriga e prendendo seus braços no chão.
Ao ver que Emanuaçu era muito forte e logo se soltaria, ela largou os braços da índia e começou a golpear seu rosto, de cima para baixo, dando uma força tremenda aos seus punhos. No início a acritó não sabia como reagir, tentando aparar os golpes, mas como era uma lutadora mais experiente logo viu que deveria esquecer os golpes de sua oponente ignorando a dor e atacá-la.
Assim, a guerreira índia golpeou as costelas da francesa com os dois braços, de modo que ambos pressionassem seu corpo. A dor foi muito forte, fazendo Eleanor se inclinar para trás o suficiente para Emanuaçu sair de baixo dela, porém, ainda no chão, ela passou as pernas por um dos braços da arqueóloga e com as mãos, fazendo um movimento de alavanca, começou a torcê-lo.
A dor era tão forte que Eleanor começara a ter vertigem, sua cabeça estava latejando de dor, sua visão se turvou, tirando seus sentidos aos poucos. Mas o efeito foi diferente do esperado pela índia. Acometida de um instinto selvagem de sobrevivência, a francesa mordeu a perna de Emanuaçu, fazendo com que ela a soltasse rapidamente, mas não teve tempo de se proteger, estava exausta.
A acritó montou em cima dela, imobilizando seu corpo, primeiramente para descansar, pois também estava exaurida e sua perna doía muito. Entretanto, para não dar o mesmo refresco a sua oponente, Emanuaçu inclinou seu corpo por cima do rosto de Eleanor de forma que a francesa não pudesse respirar direito, cuidando para desmaiar sua oponente, pois não queria matá-la, já que esta deveria participar do ritual.
Ela era sem dúvida uma adversária de valor.
Desesperada, Eleanor começou a se debater em vão, a força da acritó era muita. A dor na sua cabeça começou a aumentar à medida que ia sendo sufocada, sua visão foi ficando preta, perdendo gradualmente todos os seus sentidos; mas quando achava que não teria mais como suportar, Emanuaçu se levantou sem aviso. Eleanor já quase inconsciente olhou em volta, como uma criança pedindo socorro.
Olhou e podia avistar o vulto de um homem grande; só conseguiu perceber que usava uma jaqueta e chapéu. Ele estava enrolando uma corda ou talvez um chicote. De repente ela o reconheceu, não, não podia ser real, mas ele estava ali à frente, todavia, antes de entender o que acabara de acontecer, ela desmaiou.



Nota do Autor: O título desse capítulo foi brilhantemente criado pelo Goldfield e declara o ponto forte do capítulo e uma das passagens mais marcantes de minha estória, de fato esse é o único combate que eu realmente gostei de escrever e acredito que tenha ficado bom. Talvez pra quem nunca tenha feito uma luta com agarramentos, esse duelo tenha sido meio confuso, mas de qualquer forma isso é natural, acredito que se vocês estivessem lá ao vivo, também achariam tudo muito confuso!
Aqui finalmente podemos conhecer um pouco melhor o personagem Mike, muito inspirado em um estadunidense que eu conheço, no seu jeito de falar, mas seu questionável caráter é fruto de minha mente apenas e claro do personagem Beloq dos Caçadores da Arca Perdida.
Um diário com um mapa sem palavras é uma clara homenagem ao Diário do Graal de Dr. Henry Jones no filme Indiana Jones e a Última Cruzada.
A onça pintada devia ser enterrada como no costume indígena, pois se isso não for feito, se um animal morrer de forma tão desrespeitosa, os seres da floresta podem se enraivecer e um Caipora pode cobrar o insulto.
Lenda indígena que tem várias formas e nomes diferentes em inúmeras regiões da América do Sul, o Caipora protege os animais e não deixa que os homens o matem em caçadas sem sentido.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Capítulo VI - Retorno de Maramuzan

A primeira coisa que sentiu foi o cheiro. O cheiro era muito forte! O som da carne estalando no fogo logo foi abafado por aqueles gritos horrendos! Não queria olhar, na verdade não conseguia olhar, mas eles o forçaram! Aquela era a visão mais aterradora que um homem poderia ter em sua vida. Toda a coragem e firmeza que habitavam seu interior foram substituídas pela loucura e pelo desespero!
Súbito, ele acordou. Tinha esse terrível pesadelo todas as noites e era tão terrível, que por muito tempo preferia a insônia do que enfrentar aquilo. Estava duro, não conseguia se mover, nem falar, pois seu corpo não correspondia mais aos seus comandos. Tinha que fazer uma força imensa para reagir. Há muito já havia desistido, mas agora tudo dependia dele, agora ela dependia dele e isso lhe dava forças para sair daquele estado.
- Levanta velho! – disse para si mesmo. – Eu sou Fernando Roberto Vilela, e isso não vai me deter!
Dito isso, Fernando se levantou, uma vez de pé, olhou em volta e lembrou que estava em uma caverna, na entrada do Vale dos Acritós. O caminho da esquerda, mais longo, mas que o levaria à Ilha no centro do vale, exatamente aonde queria ir. Embora ainda não muito consciente, devido à abstinência da bebida, ele continuou, descendo a caverna, agora seguindo pela margem de um pequeno rio subterrâneo.
Ao longo do caminho vira, bem no alto, uma ponte pênsil, a notou porque ouvira um som, havia alguma expedição passando por ela, pois via vários feixes de luzes. Fernando sabia que era a dela, só poderia ser de sua pequena. Os sons das vozes estavam muito longe para que Fernando a reconhecesse, mas tinha certeza de que era Eleanor. Sua aluna que o tinha convencido a vir àquele maldito vale novamente afinal. Alisou mais uma vez o chapéu Cury e sentiu sua presença tão próxima que quase podia vê-la...
Repentinamente algo caiu próximo a ele, era uma lanterna, não como aquelas com imã como a usada por escavadores, mas uma mais simples, e aquilo era no mínimo estranho. Achou melhor se esconder, embora não acreditasse que pudesse ser visto naquela escuridão. Deixou que a expedição passasse e continuou pelo caminho.
Fernando era um exímio rastreador. Quando passou pela bifurcação que existia próximo à entrada, ele havia rastreado a expedição de Alex Michael Carter, indo para o caminho da esquerda. No entanto, percebera agora que Eleanor devia ter cometido o erro de ir pela passagem da direita, ela não era rastreadora, embora com certeza tivesse contratado um, mas não tão bom quanto Alex ou o próprio Fernando. Logo ele deveria apagar seus próprios rastros e seguir.
O caminho era muito longo e quando já pensava em parar, terminou em um ponto onde não havia margem para o rio, ele analisando aquilo deduziu que só poderia existir uma passagem por debaixo d’água, assim Fernando resolveu descansar para só depois prosseguir.
Após um tempo colocou todas as suas coisas em sua mochila, já que ela era impermeável, teve todo o cuidado ao guardar o seu chapéu. Depois de tudo pronto entrou na água, e como previa realmente havia uma passagem submersa, e por ali seguiu.
Nadando por um longo túnel, Fernando já estava quase sem fôlego quando finalmente percebeu uma margem no alto e imaginou que se encontrava no caminho correto. Ele estava certo, saindo da água pôde ver uma grande câmara, onde um grande e velho barco estava encalhado, quase não o percebeu porque estava muito escuro e tinha que sair da água para pegar a lanterna.
Mal conseguiu examinar o lugar, percebeu criaturas imersas na água, não podia vê-las totalmente, apenas suas silhuetas, mas a forma com que elas se moviam não era natural. Pareciam pessoas, mas os sons que emanavam, a forma como seus vultos se portavam, davam um ar bestial a elas.
Fernando tentava sair da água, e pegar sua arma que estava dentro da mochila, mas obviamente as criaturas se moviam mais rápido! Logo chegaram nele e o agarraram puxando-o para debaixo d’água. Ele bateu em uma das criaturas, tentando atingir sua barriga, mas a pele de seu oponente era dura demais, como se fosse o couro de um jacaré.
Seria isso possível? Pensou. Fernando estudara bem as lendas indígenas, era um profundo conhecedor, e claro, conhecia a lenda de um povo anfíbio que vivia nas águas, sempre próximo à terra, pois se alimentava de gente. Sim ele conhecia bem a lenda dos Igupiaras.
Assim, pegou sua faca de sobrevivência, uma Commander II, e cravou entre as costelas da criatura, girou a lâmina de forma que partisse seus ossos, se é que aquilo tinha ossos. A besta proferiu um grito de dor que assustou as demais! Esse foi o tempo suficiente para Fernando tirar sua lanterna e sua arma da bolsa para poder atirar nos Igupiaras.
Seres horrendos, que até pareciam homens, mas tinham um corpo escamoso e possuíam nadadeiras. Os olhos eram grandes e redondos como os de um peixe e em suas costas havia guelras. A pele era verde escura e afiadas garras saíam de seus longos dedos.
Havia seis deles, e Fernando contava com apenas seis tiros, quando descarregou a arma; as criaturas estavam mortas.
Depois disso, após ele recarregar a arma e colocá-la na cintura, Fernando se dirigiu ao barco, para examiná-lo. As primeiras impressões que o arqueólogo teve foram de que realmente poderia ser uma embarcação fenícia, pois tinha seu famoso aríete de madeira e bronze na proa, que servia para perfurar e atracar os outros navios, geralmente de piratas.
Dentro da nau havia imagens que Fernando julgou ser dos filhos do Deus Baal, chamados Ayan e Anat. Essa era a melhor prova de que era realmente fenício, mas não uma embarcação de comércio, e sim um barco de guerra. Havia algo estranho naquele local e ele não sabia o que, um calafrio subiu pela sua espinha, algo estava errado.
Examinando bem, percebeu que aquele antigo navio tinha sido saqueado recentemente. Alex Michael Carter. Pensou. No entanto, não era aquilo que o perturbava. Perto dele, e por algum motivo oculta até então, havia uma cadeira, com os restos mortais de alguém, que deveria ter sido o capitão. Com ele estava um mapa, ou Fernando assim presumiu, e um colar com uma onça envolta por raios de sol, algo totalmente estranho para uma embarcação fenícia.
Sem aviso, enquanto contemporizava, o esqueleto se moveu, abrindo sua boca, da qual saiu um odor horrível. Fernando recuou já com sua arma em mãos, mas o corpo pútrido caiu realmente sem vida. Um vento gelado passou pela embarcação, chegando a derrubar alguns objetos. O arqueólogo decidiu sair da nau de guerra e não mais perturbar os que haviam morrido ali.
Ao sair do barco, Fernando estranhamente não mais viu os corpos dos Igupiaras, e assim, com cautela, continuou o trajeto que dava em dois túneis. Um, próximo à água, estava bloqueado por pedras, e ele facilmente percebeu o uso de dinamite para fechar o local. Alex! Aquele estadunidense canalha realmente tinha passado por ali, concluiu.
O outro, uma caverna, estava livre. Assim seguiu pelo longo caminho, um pouco difícil de percorrer, com um chão arenoso e as paredes cobertas por limo. Em um ponto, teve que escalar. Claro que possuía as ferramentas necessárias, mas escorregadio como estava, era bem perigosa a subida. Logo viu uma luz, mostrando que a saída se aproximava.
Ao chegar fora do subterrâneo, finalmente, Fernando avistou um lago dentro de uma clareira envolta por uma densa floresta. Sim, ele pensou, estava na Ilha, no centro do Vale, agora só faltava vê-la. Agora acreditava que era possível que ela estivesse ali, vendo o que viu próximo ao barco fenício.
De certa forma, ele estava confortado por ver a luz do dia, depois de tanto tempo no escuro. Observava os pássaros em volta e alguns pequenos macacos pregos. Um pequeno lago belíssimo com água cristalina e lindos peixes. Ele olhou para toda aquela beleza e disse:
- Vi Veri Veriversum Vivus Vici!
Uma frase do Fausto de Goethe que significa algo como – eu, enquanto vivo, pela verdade conquisto o universo – uma frase que fora seu lema por muito tempo e agora quase não lembrava mais, principalmente depois dos horríveis acontecimentos que o levaram a ficar naquele estado em que Eleanor o encontrou no bar em Minas Gerais, mas ele não queria se lembrar.
Tão logo chegara a aquele local paradisíaco, Fernando escutou um canto, limpo e suave, um canto totalmente cativante. No entanto, retirou duas pequenas porções de algodão, para tampar os ouvidos. Quase desistiu da idéia, a música era muito encantadora, mas colocou assim mesmo.
Dentro do lindo lago surgiu uma mulher de extrema beleza, ela era formosa de corpo, com a pele bronzeada que ficava ainda mais linda debaixo d’água. Tinha longos cabelos negros que se moviam suavemente enquanto nadava. Fernando teve a impressão de ver uma calda de um grande peixe próxima daquele corpo perfeito, porém quando a bela índia saiu da água ele não viu nada além dela.
Fernando refletia sobre como aquela moça era excepcionalmente bonita, não era nova, mas também não muito velha. Tinha pernas grossas e lindos seios, seu rosto tinha uma expressão de ternura e seus lábios eram carnudos. Devia ter um metro e oitenta de altura, e até o seu andar era suave e sensual.
Como o arqueólogo brasileiro já havia estado com vários índios, há muito já se acostumara com a nudez, mas a beleza dela o perturbava, e ele sabia o porquê; assim, com muito esforço, parou de admirá-la e disse em voz alta, apontando sua arma na direção dela, em idioma indígena:
- Saia totalmente da água e não volte a cantar, Iara!
A índia se aproximou dele e, saindo realmente da água, tocou delicadamente o peito de Fernando, que se afastou, tirando o que tampava seus ouvidos, mas o experiente arqueólogo não ousou olhar para ela novamente. No entanto, até o cheiro dela o embriagava e ele não sabia por quanto tempo poderia resistir a aquela criatura.
A senhora do lago falou para ele, também em sua língua:
- Acha que apenas cantando eu encanto os homens?
- Se você me encantar, não vou poder fazer o que vim fazer! – disse Fernando.
- Sim, mas será meu desejo que você não fique aqui?
- Se eu ficar, se eu me tornar um de seus peixes, a aldeia morrerá!
- Uma decisão difícil. Como eu posso saber que você não vai levar o uirapuru, como saber que ele ficará aqui?
- Porque eu sou Maramuzan e meu retorno foi profetizado!
A Iara andou circulando Fernando, e com seu toque passou pelo corpo dele, relaxando seus músculos. Ele estava quase entorpecido pelo seu cheiro, suave como flores do campo; pelo seu toque, macio como a brisa da manhã; pelo seu andar, encantador como o de uma onça. Ela parou em sua frente e se aproximou tanto que ele podia ver seus olhos negros pela primeira vez e isso quase o enfeitiçou totalmente.
- Você me fala de profecia? – ela falou, com o rosto bem próximo ao dele, e continuou. – Eu tenho uma pra você, se ficar aqui comigo viverá para sempre, mas se partir encontrará o seu destino!
Assim, a Iara o beijou, um longo e forte beijo que quase o fez cair. Fernando se sentiu como um garoto inseguro em frente à sua primeira paixão, algo que há muito tempo não sentia. Ele a segurou com firmeza entregando-se a aquele momento sublime, mas o arqueólogo tinha uma vontade inabalável e lutando contra si mesmo a afastou.
Olhando diretamente em seus olhos, com firmeza pela primeira vez, Fernando disse, em grego antigo:
- Enfrentei homens na guerra e ondas cruéis!
- Como, o que disse, Maramuzan?
- Eu não vou ficar aqui, Iara!
- Então você a ama! Só pode ser isso, para resistir a mim!
- Apenas tenho um dever a cumprir, nada mais!
Ele sabia que ela poderia ser ciumenta, principalmente após ter sido rejeitada, não queria que a Iara ferisse Eleanor.
A Senhora do Lago o levou através da floresta, para a margem da Ilha, de lá Fernando podia ver uma boa parte do Vale. Próximo à margem, havia uma pequena canoa, e do lado, algumas caixas. Ele tirou seu chapéu Cury, enxugando o suor de seu rosto com o braço e olhou para dentro delas.
- Eu não sei o que é! – disse a mulher.
- São dinamites, onde conseguiu isso?
- Do outro, que chegou primeiro!
- Mike, onde ele está agora?
- Na floresta, ele não conseguiu abrir o templo, apenas Maramuzan pode!
- Sim! Apenas eu posso abrir o templo.
- As coisas da sua amada estão aí também!
Fernando olhou em uma das caixas e encontrou várias ferramentas que deviam ser da expedição de Eleanor, ela não pegou o que precisava, viu as pistolas dela, deduziu quais eram, por serem francesas, e as entregou a Iara.
- Isso deve ser devolvido para ela, não vai sobreviver sem suas armas.
- Ela está na aldeia, junto aos acritós.
Ele colocou tudo o que precisava na canoa, conferiu para ver se estava tudo certo, sabia o que devia fazer, sabia que seria quase impossível realizar tudo aquilo, e em seu momento de dúvida ele lembrou de algo que lera há muito tempo, quando estava na Faculdade, e sorriu a respeito de como era propício agora:

"Muitos homens, segundo me parece, desejam praticar belos feitos, mas poucos têm coragem de tentar, e raros entre os que tentam são capazes de perseverar até o fim”.

Com aquela frase em mente, Fernando tirou a canoa da terra, preparando-se para cruzar o lago até o resto do Vale, a Iara se aproximou dele e perguntou:
- O que você vai fazer agora?
Ele apenas sorriu e respondeu:
- Vou provocar uma grande confusão na aldeia dos acritós!



Nota do Autor: O título desse capítulo é uma homenagem ao último livro da trilogia do Senhor dos Anéis, O Retorno do Rei. No entanto, realmente eu não fui o único a fazer uma homenagem assim, pois existe o filme O Retorno de Jedi de George Lucas, que torna isso uma homenagem dupla.
As Igupiaras são uma antiga lenda indígena, uma espécie de tribo que vive em baixo d’água, nos rios e lagos. Eles atacam os homens para comê-los e possuem uma cultura própria toda adaptada à vida subaquática.
Não existem ligações comprovadas entre os trirremes gregos com os fenícios, na verdade todos os vestígios encontrados por Fernando na ilha e no templo são absurdos e não há nenhuma prova real da presença fenícia no Brasil.
O povo que fez o barco e o templo não seria fenício, mas um povo que viria da mistura deles com os índios que viviam no Vale, ao invés de uma cultura subjugar a outra, foram as duas que se misturaram e poderiam ter “gerado” os acritós, mas tudo isso é invenção, novamente digo que essa é uma estória e não história, ou seja, uma ficção e não relatos arqueológicos reais.
Novamente há muitas citações aqui principalmente dos historiadores clássicos gregos Heródoto e Políbio. No entanto, todas se encaixam muito bem aqui.
A Iara, creio eu, é um mito tanto indígena quanto europeu, já que há elementos da sereia nela. Como a sereia a Iara encanta com a voz e é incrivelmente linda, mas ela não mata os homens que encanta. Ao invés disso, ela os transforma em peixe para que vivam sempre com ela. Há uma mistura de Iara com Mãe do Ouro nessa personagem, porque ela realmente guarda tesouros e ajuda muito o Fernando com algumas informações.
Termino fazendo uma ligação, novamente, da parte do Fernando com a parte da Eleanor, mas tenham a atenção de notar que os eventos do Capítulo 06 ocorrem antes do Capítulo 05.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Capítulo V - Aldeia dos Acritós

Mon Dieu! – Eleanor pensou. Ficou inerte por alguns minutos, não ouvia nada até receber um tapa daquele homem e recobrar a consciência. Ela não podia acreditar naquilo, não parava de pensar no que o Beto havia lhe dito, como queria que ele estivesse ali agora, Fernando saberia o que fazer.
O índio era grande, enorme na verdade, devia ter mais de dois metros e isso não era natural. Um pouco gordo, mas tremendamente musculoso como um pugilista. Tinha pinturas de onça em várias partes do corpo, desenhos no rosto que lhe davam uma aparência ainda mais ameaçadora e pequenos gravetos presos à face fazendo lembrar os bigodes de uma onça-pintada. O homem era uma fera selvagem pronta para o ataque. Possuía muitos colares e uma expressão muito forte e convicta.
A francesa olhou em volta e viu muitos índios como aquele, não tão grandes, mas todos altos e fortes demais para índios comuns. Usavam azagaias, bordunas, lanças e arcos longos como armas e ela via suas mulheres portando-as como se fossem os homens. Podia ver os mais velhos que sempre estavam com algum pequeno animal, como um macaco ou papagaio.
Aquela aldeia era razoavelmente grande. Eleanor imaginou que seria exatamente redonda se vista por cima. Suas ocas aparentavam ser feitas de palha, mas eram de pau a pique por dentro. Existia uma grande maloca no centro de onde saía um cheiro tão forte de ervas que ela podia sentir facilmente. Via peles de vários animais sendo curtidas e mulheres preparando algum tipo de bebida que era muito disputada pelos indígenas.
Tudo isso foi percebido pela arqueóloga e mesmo estando com uma forte dor de cabeça, Eleanor percebeu que não havia nenhuma criança na tribo.
Aquele índio olhou para ela com fúria, erguera-a pelos cabelos e aproximou o rosto em um gesto que ela interpretou como se ele a estivesse cheirando, estudando-a cuidadosamente. O homem bufou fazendo uma expressão de total desprezo, como se a francesa não fosse nada para ele, e então a jogou novamente naquele chão duro. Eleanor concluiu que seu agressor se tratava de um selvagem, um animal raivoso e violento.
- Abá-pe endé? – disse o índio. – Aba-pe endé? Mamõ-pe ere-îkobé?
Ele estava ficando com raiva e LeBeau não entendia nada do que aquele selvagem dizia, lembrou de Beto novamente. Ela achou melhor falar, mesmo que ninguém entendesse, e começou:
- Eu não entendo o que...
O índio desferiu-lhe um poderoso tapa com extrema violência. Eleanor caiu e cuspiu sangue, a dor em sua cabeça voltara agora com toda a força, um som agudo se elevou aos sons da aldeia. Todo seu corpo doía e era penoso até mesmo respirar. Por um instante ficou zonza, quase não percebeu que o índio começou a falar de novo:
- Xe Ucrarí. Xe morubixaba supé!
- Abá-pe endé? Mamõ-pe ere-îkobé?
Ele a ergueu pelo pescoço com um só braço e apertou fortemente, sufocando-a. Quando a dor era quase insuportável, quando ela estava quase desmaiando, ouviu um grito e o índio largou-a rapidamente, fazendo com que Eleanor caísse ruidosamente no chão mais uma vez.
A arqueóloga viu outro índio, bem mais velho, na verdade aparentava ser o mais velho que havia em toda aldeia. Possuía longos, mas poucos, cabelos brancos alvoroçados. Andava com a ajuda de uma espécie de cajado com uma cabaça em sua extremidade superior e todos abriam caminho para ele, pois pareciam respeitá-lo muito.
O velho olhou com serenidade para o índio que estava com Eleanor e disse:
- A’ani! A’ani xo’ene!
- Nde apypyk a’e!
O índio olhou para o idoso com raiva, mas resolveu não desafiá-lo e se afastou. A jovem francesa até pôde perceber certo medo em seu agressor e olhou para o ancião com uma maior curiosidade; ele já estava se aproximando dela com um grande sorriso. Passou a mão em seus cabelos com delicadeza e a colocou gentilmente sentada. Aquele velho homem inspirava tanta confiança que Eleanor quase esqueceu sua dor e medo. Quando ela estava mais calma ele finalmente começou a falar:
- Sou eu Rarití. Sou eu paîé!
- Um pajé? Você é um curandeiro – respondeu ela.
- Deve ocê tirar culpa do morubixaba, muito bravo com seu!
- Eu não fiz nada para seu chefe! Por que ele está bravo comigo?
- Ucrarí bravo por seu vir aqui, comer aqui, dormir aqui e falar que não Uirapuru, mas depois ir tabu pegar Uirapuru.
- Meu não, quem quer pegar o uirapuru, é o Mike?
- Aîuru-îuba. Como ocê homem, cheio de gente não aqui!
Ela conhecia essa expressão, aîuru-îuba. Era dada aos franceses pelos índios da Confederação dos Tamoios quando o Rei Henrique II da França determinou uma invasão ao Brasil logo no século XVI. No entanto, não deveria ter outro francês ali, tudo isso era muito estranho.
- Não, eu não estou com eles! – disse Eleanor. – Tem que explicar que eu vim com outros, que vocês mataram, Dieu. Eles eram boas pessoas e vocês mataram todos.
- A’an! Ocê aqui entrar tabu, pegar sagrado Uirapuru e trazer mal pro anama, ocê destruir Acritós!
- Não eu...
A arqueóloga parou porque Rarití estava certo. Realmente tinha vindo ao vale para pegar o Ídolo, veio para levá-lo. Na ótica dos índios Elenor iria roubá-lo deles, e por suas crenças trazer a desgraça para todo o seu povo. Ela ficou triste, lembrou-se do que Beto dissera no dia da formatura. Um ladrão de tumbas simples!
O velho índio a ergueu e a levou para a grande maloca que ficava no centro da aldeia. Lá dentro a francesa pôde ver várias crianças, todas doentes, com chagas e dores horríveis. Ela olhou para o sábio pajé já sabendo o que ele iria falar.
- Olho ocê nos curumins? – perguntou o indígena idoso. – Eles assim antes de todos por serem mais fracos!
- Eu sinto muito, Rarití!
- Eles assim só por ocês aquí, só por ocês perto Uirapuru.
- Eu não sei o que dizer!
- Ocês levar Uirapuru, mal passar todos!
Uma súbita dúvida e tristeza tomaram conta dela. O que estava fazendo? Ela não podia levar o Ídolo de lá, mesmo com os maus tratos que recebera, mesmo com seus hábitos selvagens, Eleanor se apiedou daqueles índios quase acreditando que o Uirapuru realmente estava ligado à saúde deles, mas isso não importava, pois seu problema maior agora era como sair de lá e encontrar Alex Michael Carter. Não tinha mais certeza do que faria com o Uirapuru, mas não deixaria aquele canalha pegá-lo.
Ao saírem da maloca a arqueóloga viu o índio que a tratara com selvageria, o homem que a espancara e a prostrara. O morubixaba que estava com um Ibirapema, um tacape sagrado usado para o ritual por alguns índios brasileiros antropofágicos. É essa arma que desfere o último golpe no prisioneiro antes da aldeia devorá-lo. Estava junto com uma linda mulher com pinturas semelhantes às do Rarití. Como ele, usava um bastão com cabaça, mas de menor tamanho, mais parecido com um cetro do que um cajado.
O velho percebeu o medo de Eleanor e disse tranqüilizando-a:
- Eles caça seus, caça aîuru-îuba. Eles mataram Acrítos, eles valor, agora passam pra esse pra anama.
- Quem são eles?
- Ele Ucrarí, o morubixaba da aldeia, um chefe de guerra. Ela Anakeá. Ela paîé mais pequena!
- Quem é o índio que me trouxe aos pés de Ucrarí?
- Ele não, ela! Emanuaçu, ela pega ocê na mata! Grande honra ocê por Emanuaçu! Grande guerreira ela! Agora sempre cuida aîuru-îuba.
- Sim, eu sou francesa! Meu nome é Eleanor!
- Eleanô?
- Não! EleaNOR!
- Sim! EleaNÔ!
- Ah, il ne manquait plus que ça! – disse ela sem esperança que o índio aprendesse seu nome corretamente. A arqueóloga teve novamente uma vertigem e só não caiu porque o velho a segurou. – E você Rarití? Por que é gentil comigo?
- O que ser gintil?
- Por que é bom comigo?
- Té! Porque ocê é...
Eles foram interrompidos com a chegada de Emanuaçu, que falou:
- Xe erasó a’e, Ucrarí nhe’eng!
- Umã-me-pe?
- Morubixana oca!
O velho índio olhou para Eleanor e falou:
- Ocê ir agora! Emanuaçu levar oca de Ucrarí! Ocê fica bem lá!
- Não, eu não quero ficar com ele, por favor!
- Umã! – gritou Emanuaçu e puxou Eleanor pelos cabelos.
Eleanor já estava cansada de se prostrar a aqueles índios, ficou firme e passou uma rasteira na jovem guerreira que caiu no chão. Todos os Acritós pararam para olhá-las, mais animados do que assustados com a sua reação. Logo ela sabia que eles não iriam interferir e apesar da dor que sentia ficou de pé ameaçadoramente para Emanuaçu.
A índia se levantou com fúria no olhar, agora a francesa pôde perceber o tamanho daquela guerreira. Devia ter aproximadamente um metro e oitenta, como os outros estava pintada de onça, era incrivelmente bonita e forte. Tinha o corpo bem desenhado e pernas muito longas. Estava vestida apenas com uma espécie de pele que lhe servia como a parte de baixo de um biquíni. Trapos de pano envoltos em cada um dos joelhos e cotovelos completavam toda a sua prática indumentária.
A jovem arqueóloga sabia que aquela lutadora a partiria ao meio, assim resolveu atacá-la primeiro, pois julgava que por seu pequeno tamanho Eleanor seria mais rápida. Partiu pra cima de Emanuaçu e tentou golpear seu rosto. Como uma onça selvagem, a índia esquivou-se facilmente e aproximou seu rosto ao dela encarando-a, desferindo um poderoso golpe com sua própria cabeça rugindo para a francesa, que simplesmente desmaiou.
Eleanor começou a acordar e a primeira coisa que percebeu foi um suave som de flauta tocando uma canção desconhecida para ela. Uma mão macia acariciava os seus cabelos dando a ela um conforto tão grande que a arqueóloga quase dormira novamente. Foi então que ela abriu os olhos e viu que Anakeá estava junto a ela na rede e Fernanda próxima, tocando sua flauta.
A esposa do morubixaba devia ter uns quarenta anos, mas era muito bonita ainda, tinha um lindo corpo e olhos que apenas traziam paz a Eleanor. Como todos ela usava pinturas e adereços de onça, mas apenas como Rarití ela usava uma araçóia, uma saia de palha que só os pajés usavam.
- Xe por posanga ocê e fica bom! – falou a índia.
- Obrigada! Você é a esposa de Ucrarí, não é?
- Pá! Esposa de morubixaba é eu.
- Você é como o Rarití, não me machuca?
- Eê! Rarití acha ocê Maramuzan, eu não, mas ele saber mais eu!
- O que é isso?
- Visão de longe, Maramuzan uma vez aqui e agora de novo, ele não deixa Uirapuru sair, ele enfrenta seu anama!
- E por que você acha que não sou eu?
- Eu já vi Maramuzan, ele...
Anakeá parou de falar olhando para a entrada da oca. Eleanor viu que era Emanuaçu que a vigiava sempre, como o pajé disse que faria. Como não viu mais ninguém além delas a francesa resolveu perguntar a Fernanda:
- Quem a vigia, Fernanda?
- Ninguém! – disse a loira parando de tocar. – Algo a ver com a flauta, eu acho!
- Amiga sua fala com os Deuses – disse a mulher indígena. – Faz sons com seu sopro e fala com Tupã.
Para os Acritós quem tocava algum instrumento musical podia falar com seus Deuses e por isso a jovem antropóloga foi poupada dos maus tratos que Eleanor sofria. Aquele era o único alívio que as duas mulheres brancas tiveram desde que entraram naquele maldito vale.
Eleanor pensou que destino teria Fernanda no meio daquilo tudo. A francesa a achava ingênua demais para ficar naquele lugar. No entanto, ela era uma antropóloga afinal de contas e já devia estar acostumada a viver entre nativos. Talvez até gostasse disso, pois parecia bem calma agora.
Repentinamente uma forte explosão assustou-as, elas foram à porta da oca e viram que a paliçada que cercava a aldeia estava destruída e pegando fogo, os índios estavam assustados porque nunca tinham visto algo assim, muitos gritavam que era obra do Boitatá, a gigante cobra de fogo, mas Eleanor sabia que podia ser simples dinamite, Anakeá olhou pra ela e disse:
- Ocê aproveita agora e foge, encontra Maramuzan e traz ele pra aldeia, não deixa seus pegar Uirapuru!
- Vamos Eleanor! – disse a amiga. – Vamos logo sair daqui!
- Vão logo! – exclamou Anakeá. – Tome isso seu!
A índia lhe entregou suas pistolas, Eleanor pegou-as e correu junto com a amiga.
Entretanto Emanuaçu já estava esperando por isso e logo se pôs a perseguir as duas. Em um ato de desespero, Fernanda se jogou contra a índia e as duas se engalfinharam no chão.
- Vá! – gritou a jovem loira. – Saia deste lugar maldito!
Eleanor fugiu em meio à confusão, passou pela barreira destruída e correu, correu por várias horas pela mata sem destino, com medo. Estava preocupada com a colega, mas continuou sem olhar para trás.
Ela demorou em parar e quando o fez, simplesmente caiu no meio da floresta sem saber onde estava.
Mesmo do jeito que se encontrava, exausta, conseguiu ouvir o som de alguém se aproximando, a francesa não podia acreditar, será que era Fernanda que escapara ou era a maldita da Emanuaçu? Não se importava mais, até queria que fosse ela, queria acertar as contas com aquela índia, Eleanor se levantou e olhou para quem vinha em sua direção...



Nota do Autor: Há muitas falas em idioma indígena aqui, muitos podem ter ficado perdidos, mas era isso mesmo que eu queria que acontecesse, já que Eleanor não sabe falar esse idioma e queria que os leitores se sentissem como ela.
Eu usei o Tupi para criar os diálogos e eles realmente têm significado, mas nada que estrague a estória, são coisas como: “Quem é você?” ou “De onde você vem”, ou seja, nada demais.
O que realmente pode ter ficado confuso foi quando o Pajé fala em português carregado de sotaque e erros gramaticais, mas ainda assim, prestando bem atenção, acho que se pode entender tudo que ele fala!
A natureza dos índios é obviamente irreal, não existem índios tão grandes e fortes como descrevo, isso só aumenta o ar sobrenatural do vale, mas pensando bem nada impede que realmente tenham existido os Acritós.
A idéia de a aldeia ter crianças enfermas é uma clara homenagem ao filme Templo da Perdição, mas diferente deste, os índios foram bem mais violentos com Eleanor que os indianos com o Indiana Jones...

sábado, 22 de maio de 2010

Capítulo IV - Lembranças ao Vento

Eleanor LeBeau acordou, teve uma ótima noite de sono e estava muito feliz agora! Finalmente era o dia de sua formatura, finalmente seu amado professor a convidara para um encontro, tudo estava indo bem. Nada poderia ser melhor que aquilo, nada!
Um súbito medo correu pela sua espinha, ela sempre tinha medo quando tudo ia bem, sabia que sempre junto à grande felicidade vinha uma grande decepção, mas isso não ia atrapalhá-la hoje, estava muito feliz e nada tiraria esse animador sentimento dela.
A jovem tomou o café da manhã que tinha preparado na noite anterior como sempre. Já estava acostumada a viver sozinha. A vida de estudante fora de casa, sempre sem dinheiro e tendo que resolver todos os problemas sem sua família pela primeira vez. Eleanor não sabia se ia voltar pra casa dos seus pais em Châteauroux, ou se ia ficar em Paris.
Como era boa aluna, tinha conseguido um estágio em um museu que ajudaria a pagar suas contas caso ficasse para uma especialização, e claro, tinha o Fernando, o seu Beto que poderia fazê-la ficar mais!
Como de costume LeBeau iria à caminhada matinal com sua amiga, mas dessa vez não seria em um parque. Tinha combinado que hoje iriam pela famosa Avenida Champs Élysées, bem perto de onde ficava o café em que encontraria seu amado professor.
Eleanor estava eufórica. O que ele queria com ela? Só podia ser para falar que a amava. Beto nunca tinha dito isso, mas a jovem imaginava que seu professor sentia alguma coisa por ela, algo especial.
Sua amiga logo chegou a sua casa e foram para a avenida. A colega, que se chamava Fabienne Dorléac, não era muito bonita, era verdade, mas agradava a todos por sua simpatia. Tinha cabelos loiros e olhos castanhos claros, quase tão baixa e pequena como LeBeau, mas não tinha sua aparência frágil.
Assim seu sorriso de sempre Fabienne logo falou:
- Como estão indo as coisas Eleanor?
- Muito bem!
- Parabéns por sua formatura!
- Você vai lá não é?
- Claro que vou, arrumei até um vestido!
- Hum, você de vestido! Nunca tinha imaginado!
As duas riram disso, realmente Fabienne não era muito de usar vestidos, usava roupas mais práticas, roupas de fotógrafa como ela dizia. Assim depois de um tempo voltou a falar:
- E afinal de contas, o Mike também vai estar lá!
- Sim, Fá. Mas tome cuidado com ele, eu sei que ele é bonitinho...
- Ele é uma gracinha Eleanor!
- Sim, mas tome cuidado, ele não...
- Você já escutou aquela música?
- Eu... Qual, a Jái confiance em toi? – Perguntou LeBeau.
- Sim, a da Nadiya!
- Já minha querida, mas não sei se gostei...
- Ah, agora vai sair um álbum dela, Changer les Choses, eu acho.
- Hum. Vamos ver. Talvez eu goste, mas não gosto muito de música pop!
- Certo, mas por que estamos indo pela avenida hoje?
- Ah, é que eu vou encontrar com o Beto!
- Sei, vai falar com ele agora que você se formou né?
As duas riram novamente...
- Então eu ficarei aqui – disse Fabianne que parecia ter visto algo – Também tenho um encontro sabe?
- Quem?
A amiga se calou e Eleanor temia a resposta, mas logo suas suspeitas se esclareceram quando viu Alex Michael Carter encostar o automóvel.
- Man! – exclamou Alex – Por um momento eu achei que não encontraria vocês!
Mike era o aluno mais disputado pelas garotas do seu curso e ele se aproveitava disso muito bem. A jovem arqueóloga não gostava dele por achá-lo um completo canalha.
LeBeau fez uma expressão de tanto desgosto que sua amiga sentiu vontade de pedir desculpas por tê-lo chamado até ali...
- Bom! – disse Fabianne – Espero que não se aborreça por eu ter falado que estaríamos aqui!
- Por quê? – respondeu o estadunidense antes que quaisquer umas das duas falassem – Somos amigos e claro os melhores arqueólogos daquele curso, não é mesmo?
- Não! – exclamou rapidamente Eleanor – Com certeza temos as melhores notas, mas apenas saberemos se somos bons arqueólogos no futuro!
- Boa resposta! – elogiou Alex – Essa é a minha garota!
- Não sou sua garota! – a arqueóloga olhou para sua amiga – Acho que sou a única do curso a dizer isso, mas...
- Bom, acho melhor irmos então! – disse finalmente Fabianne, magoada com a indireta da colega.
- Até mais Fá!
- Até a formatura!
- Sim, até a formatura! See ya!
Eleanor refletiu por um tempo sobre os dois juntos e sabia que a amiga era romântica demais, seu coração seria partido por aquele cafageste, mas como dizer isso a doce Fabianne?
Não posso fazer nada agora, pensou. Assim voltou a caminhar e logo estava próxima do Café Montecristo, onde tinha combinado a se encontrar com o Doutor Vilela, seu amado professor. Sentou-se em uma mesa posta debaixo de um aconchegante toldo vermelho. LeBeau notou que podia ver o Arco do Triunfo de onde estava. Era simplesmente lindo.
Não demorou muito para que Fernando chegasse. Ela o olhou com ternura e sentiu aquele frio que sempre sentia quando ele estava perto. Beto a olhou rapidamente, desligou o celular que estava usando e sentou.
- Perdão! – iniciou Vilela – Estou atrasado não? Desculpe! Era minha mãe, ao telefone. Sempre fica nervosa antes de um show!
- Sim, claro! Sua mãe é cantora... Como se diz mesmo? Ah sim, de sertamejo!
- O termo correto é sertanejo! Mesmo agora ela tem receio do palco.
O brasileiro colocou um embrulho em cima da mesa. Será que era um presente para ela? Isso a fez lembrar que tinha um presente para ele, Eleanor o entregou.
- Eu obviamente já li sua tese, pequena! – disse o professor examinando o livro.
- Bem, mas essa é para você, quero que fique com ela.
- Quanto a isso eu lhe agradeço! Sua tese está ótima, é a melhor desse ano certamente!
- Achei que a melhor fosse à do Mike.
- Absurdo, eu te comparava com ele só para você se esforçar mais. Você sempre foi minha melhor aluna e de qualquer forma, Carter não passará de um ladrão de tumbas, não será um arqueólogo como você!
- Muito obrigada! É difícil tirar um elogio seu, heim?
- Você sempre recebe elogios meus, pequena. Espero não ter alimentado sua Hibris com isso!
- Ah tudo bem. Talvez só um pouquinho!
Fernando desviou o olhar, ele fazia isso às vezes e LeBeau não entendia o porquê. Ele pegou o embrulho que tinha e entregou a ela, sorriu e disse:
- Isso é um presente de formatura, espero que goste!
- Tenho certeza disso, Beto! Você me conhece muito bem!
- Não vai abrir? – Vilela perguntou evasivo.
- Depois eu abro, acho que você não me trouxe aqui só para isso?
- Bem, você terá minha recomendação para sua especialização, é o Dr. Alencastro que cuida dessa parte e...
- Não desvie do assunto professor, você me entendeu muito bem!
- O que você espera de mim Eleanor? Já discutimos isso.
- Sim, você disse que não me namoraria enquanto eu fosse sua aluna, bem, agora eu me formei e não sou mais.
Respirou fundo e tentou se acalmar. Ela o estava perdendo e sabia disso, não podia ficar desesperada, se não ele se decepcionaria, tinha que ser forte e firme, como seu amado!
- Você não está me escutando, eu...
- Eu vou voltar para o Brasil, Eleanor. Fui contratado para chefiar as escavações do Quilombo da Lua, provavelmente eu não vou mais voltar.
- Eu vou com você Beto, não quero te perder, eu...
- Não você ainda não entendeu, eu não posso te dar aquilo que procura!
- Entendi, você vai voltar para sua esposa, não é isso?
- Vou sim, voltar para ela e para minha filha, elas estão precisando de mim agora e não a como mudar isso!
- Eu também preciso de você, eu te amo, não consegue entender isso?
- Calma! Não fale desse jeito. Não posso fazer nada a esse respeito, você é jovem e linda, vai encontrar alguém, sinto muito por tudo isso!
Jovem, Fernando me vê como uma menina? Não, ela tinha que mostrar para ele que não era uma menina, que era uma mulher, que era melhor que a esposa dele. Não, isso estava errado.
- Veja bem, pequena! Isso não vai dar certo, você é uma pessoa fantástica, essa é a verdade, mas não posso te dar ilusões!
- Você vai embora, vai sair assim?
- Vou Eleanor, você vai ficar mal por muito tempo, mas vai melhorar, você é mais forte que imagina...
- Não sou nada! – LeBeau disse com desespero – Nunca serei nada!
Ele sorriu, lembrou de um poema de Fernando Pessoa, que sua aluna acabara de citar sem conhecer. Era um dos que mais gostava, olhou para ela com ternura e recitou:

“Não sou nada
nunca serei nada
não posso ser nada
À parte a isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”

Vilela deu um último olhar para a jovem e saiu. Eleanor ficou desolada com a firmeza dele, ficou desolada por tê-lo perdido, pois sabia que esse era o amor de sua vida e ela não iria encontrar outro como ele.
Depois de um tempo LeBeau olhou para o embrulho e o abriu, reconhecera o chapéu Cury e sabia o quanto isso era importante para seu professor, sabia que não tinha como calcular o valor do presente que Fernando a deu.
- Sim, Beto eu vou te esquecer, vou ser forte e você ouvirá falar de mim antes que eu te reencontre, pode apostar! – Disse isso para si mesma, se levantou da mesa e saiu, mais determinada do que antes.


Eleanor sentiu uma dor profunda, uma dor na cabeça muito forte. Abriu os olhos, estava zonza. Levantou-se com muita dificuldade em entender o que estava acontecendo.
Demorou muito para se recobrar, agora ela lembrava! Sim, tudo isso tinha sido um sonho, sombras do passado, lembranças ao vento. Por que aquilo? Por que agora? LeBeau não sabia.
Então lembrou do vale, dos Acritós. Sim, tinha sido capturada e tão logo se lembrou, ela escutou um choro contido. Um som de sofrimento e angustia, mas que estava extremamente baixo que a francesa quase não ouviu. No entanto, reconheceu a voz...
- Fernanda é você?
- E... Eu... Você acordou? – gaguejou a antropóloga.
- Sim! – respondeu Eleanor – O que aconteceu? O que fizeram com você?
- E... Eles me prenderam. Meu Deus, eu os vi...
- Os viu? Como assim? O que você viu?
- Oguata! Ah, coitadinho dele! Ele não morreu com as flechas!
- Não?
- Sobreviveu e esperou aqueles índios se aproximarem... E matou um deles! Mandou um deles para o inferno!
- Entendo...
- Ah Eleanor você não entende nada... Eu os vi!
- Como assim? Fale logo!
- Esses acritós pegaram o corpo dele e trouxeram para a aldeia! Como se fosse um troféu! Deus, eles festejaram!
- Onde está o corpo dele agora?
- Meu Deus...
- Diga logo Fernanda! Vamos!
- Eles... Deus! Os índios o comeram!
- Mon Dieu!
- Eu os vi! Entende? E... Eu... Aaahhhhhhhh!
A jovem e assustada antropóloga olhou para trás de LeBeau e deu um berro horrendo. A francesa não teve tempo de olhar e teve seus cabelos puxados repentinamente com muita força. Sua amiga gritava, mas foi silenciada de alguma forma. Eleanor foi arrastada com extrema brutalidade até o centro de uma aldeia dos acritós, ela presumiu...
A arqueóloga ainda estava muito mal, mal conseguia ver aqueles indígenas que a cercavam. Assim, foi jogada aos pés de alguém, tinha tanto medo que quase não pode levantar o rosto e olhar, mas tomou coragem e pode ver a figura mais assustadora e medonha que tinha visto até então.



Nota do autor: A cantora francesa Nadiya realmente existe e em 98 ela estourou na França com o single Jái confiance em toi. E realmente depois disso, ela grava um disco chamado Changer les Choses.
A personagem Fabianne Dorléac, embora aparece pouco, teve seus fãs e realmente gostei dela. Seu nome é inspirado no nome de uma famosa atriz francesa e ela não é feia, como muitos pensaram, mas apenas não tão bonita quanto a Eleanor.
Queria dar mais profundidade ao sentimento entre os dois arqueólogos e acho que esse capítulo ajudou muito. Ainda tive a oportunidade de novamente mostrar o chapéu do Indy, esclarecendo melhor sua importância.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Capítulo III - Entrando no Vale

Organizar aquela expedição demorou muito mais que Eleanor LeBeau poderia prever. Foram necessários três longos meses para unir os trinta e sete integrantes que eram compostos por arqueólogos, antropólogos, escavadores, geógrafos e rastreadores. Assim, com tudo devidamente preparado, eles finalmente partiram para o desconhecido Vale dos Acritós.
O Vale era cercado por um paredão de montes escarpados no qual a forma de entrar mais acessível seria uma estreita caverna, que provavelmente era a única entrada para se chegar ao interior da morada dos índios e claro, ao Templo. Um outro meio seria obviamente escalando, mas uma expedição daquele porte tornaria essa idéia completamente inviável.
A entrada da caverna era coberta por trepadeiras que camuflavam sua entrada tornando muito difícil de achar. Os rastreadores e geógrafos foram fundamentais para que se encontrasse a abertura que ficava aos pés de um imenso morro formado por roxas sólidas. Principalmente o mestiço conhecido como Joel Oguatá, que fora o mais perto de um sangue indígena que Eleanor conseguiu contratar, já que todos os rastreadores nativos conheciam muito bem os Acritós por suas lendas e os temiam inexoravelmente.
Logo na entrada, mesmo antes de penetrarem na caverna uma das antropólogas; uma linda e alta moça de cabelos loiros e olhos azuis, que provavelmente já tinha estado em várias aldeias indígenas, chamada Fernanda Schimidt; disse espantada:
- Olhem ali!
Havia uma pequena coruja em uma árvore bem próxima a caverna, como se tivesse guardando o Vale. A ave era de uma tonalidade que ia do negro ao cinza e havia algo de muito sinistro em seu olhar! Ao ver o medo percorrer todos, LeBeau prontamente espantou a coruja e falou:
- Estão vendo? Não há mal-agouro nenhum. Trata-se apenas de uma simples e linda coruja!
- Não é o... – começou a dizer o caboclo Oguatá, mas este foi bruscamente interrompido pela arqueóloga...
- Matintapereira? Isso é um mito, não existe na verdade!
Meio contrariados os integrantes da expedição continuaram e entraram relutantes na caverna. O seu interior não era muito íngreme, assim não dificultava muito seu acesso a Terra dos Acritós.
Ao entrar todos puderam sentir nitidamente o forte odor dos resíduos que se formaram ali durante os séculos de completas trevas e silêncio. Parecia que os humanos a muito não colocavam os olhos naquela escuridão, mas logo perceberiam que estavam enganados...
Os escavadores ligaram suas lanternas; ao gentil pedido do líder dos geógrafos, um negro velho e muito experiente Daniel Gonçalves Dias; iluminando completamente o local ajudando o trabalho dos rastreadores.
Fizeram um longo caminho até que a caverna se bifurcou em duas novas passagens. Foi ali que o rastreador Joel pode encontrar rastros de pessoas que passaram por pela via da esquerda não há muito tempo e achou melhor avisar aos companheiros:
- Um grupo de aproximadamente vinte homens passou por aquele lado, ao julgar pelos rastros eles não são indígenas e não estamos a mais de três horas de distancia deles.
- Je comprends! – disse a francesa – Oguatá, mas há uma suave brisa vinda do caminho da direita, deve haver uma saída não muito longe, não é mesmo?
- Eu... concordo!
- Mas e os que passaram pela esquerda? – perguntou um dos arqueólogos, um jovem rapaz muito magro e alto, chamado Joaquim Carvalho – Quem poderiam ser eles? Não seria melhor segui-los?
- Acho melhor seguir por onde determinei! – respondeu com firmeza Eleanor, pois sabia que Carvalho acabara de se formar e estava ansioso para mostrar serviço e isso poderia ser um problema – Mesmo porque o próprio rastreador concorda comigo.
LeBeau sabia exatamente quem liderava a outra expedição. Era Alex Michael Carter com certeza! Entretanto ela não tinha a menor vontade encontrar o canalha que fez tanto mal a sua amiga tão cedo...
Ao continuar pelo caminho da direita, a brisa logo foi aumentando drasticamente, tornando-se uma corrente gelada que esfriava até os ossos. Uma sensação estranha tomou conta da experiente arqueóloga, um arrepio lhe subiu à espinha como se algo muito ruim estivesse por acontecer.
Inesperadamente uma gargalhada maligna pode ser ouvida claramente por Eleanor. Suas pernas começaram a bambear, começou a se sentir caindo, caindo sem parar. Seus joelhos se dobraram ela começou a vomitar. Ouvia agora os homens de sua expedição gritando apavorados.
A arqueóloga tinha que fazer alguma coisa, algo estava errado e tudo dependia dela. Quando já estava quase se recuperando, uma terrível visão surgiu em sua frente desafiando sua sanidade.
Seres horrendos quase amorfos, do tamanho de crianças, rodeavam-na por todos os lados. Tocavam seu corpo queimando suas roupas e dilacerando sua carne causando uma dor quase insuportável.
- Não! – ela disse. – Isso não poderia ser real, isso não era real!
LeBeau fechou os olhos.
- Fique firme mocinha, são apenas alucinações, força, não há nada aqui! Tem que se recobrar. Você tem que levantar, erga-se!
Prontamente a francesa abriu os olhos, agora percebera a realidade, não havia nada, mas seus companheiros não participavam de sua recente e incrível revelação. A insanidade fazia com que um atacasse o outro companheiro, achando que era um daqueles monstros criando em uma contusão generalizada.
Ela não podia deixar que aquilo permanecesse! Gritou e bateu em cada um deles até que recobrassem a consciência. Entretanto oito integrantes da expedição foram mortos em meio a aquela loucura, incluindo o jovem arqueólogo Carvalho...
Mas o que teria provocado tudo aquilo?
Quase como respondendo essa pergunta Oguatá disse:
- Era um Avasati! – Fernanda encarou o caboclo reconhecendo suas palavras e Joel continuou – Olhem ali, estão vendo?
Havia um corpo próximo ao local que estavam. Era tão antigo que Eleanor não conseguiu analisar a quanto tempo aquele cadáver estaria ali. Ela foi até lá, e examinou o corpo. Havia uma substancia estranha entre os ossos, algo que deve ter sido modificado com o passar dos anos...
- Non! – a arqueóloga exclamou – Não é nenhum espírito maligno indígena! Estão vendo isso? É apenas algum tipo de alucinógeno. Deve ter nos afetado assim que entramos por essa passagem, quando o inalamos, nada demais!
- Que fez com que víssemos os mesmos monstros? – falou um dos escavadores; o pequeno, mas esperto homem chamado Paulo Martins. – Essa não vai colar!
- Sim, alucinações coletivas já foram registradas antes! – respondeu a antropóloga Fernanda – É mais comum do que vocês imaginam!
- Estou dizendo que é um Avasati, fomos amaldiçoados! – Disse o rastreador apontando para a francesa – Você não devia ter incomodado aquela coruja!
- É Dra. LeBeau para você Oguatá! Já estou cansada de suas superstições! Vamos juntar e enterrar os mortos temporariamente e vamos continuar seguindo com a expedição!
Eles continuaram pelo caminho até começarem ao ouvir um ruído de água fluindo ao longe. Não demorou muito para eles chegarem a uma grande fenda, comprida e bastante funda. Seu único acesso para continuar era uma ponte pênsil que ligava es extremidades da fenda. A ponte parecia ser muito antiga, feita de uma estreita passarela madeira e cordas.
- Bom, acho melhor descansarmos aqui antes de prosseguirmos. – concluiu Eleanor vendo que todos ainda estavam muito abatidos – Depois continuaremos. A saída não deve estar muito longe.
- Não está. – respondeu Daniel Dias – Pelo que pude ver pelo GPS acho que já estamos em bem mais que a metade do caminho!
- Ótimo! – a francesa sorriu e todos acharam que seria pela notícia, mas de fato foi por finalmente ela ter tido uma resposta rápida em português. Ela disse “ótimo” e não “très bon”. Estava se acostumando com o idioma. – Oguatá eu quero sua ajuda aqui, sim?
Os dois foram até a ponte e testaram para ver se era possível passar por ela. Concluíram que sim e quando voltaram a arqueóloga pode ver a forma que Fernanda Schimidt, tocava suavemente sua linda flauta, parou e olhou para ambos. Aquela antropóloga estava com ciúmes? Pensou. Era incrível que mesmo depois de tudo, até da morte de companheiros havia um possível romance surgindo. Esse pensamento fez LeBeau lembrar de Beto, mas ela logo se recuperou disso.
Todos descansaram bem e logo se colocaram para continuar a expedição. Assim Eleanor testando novamente a ponte disse:
- Essa ponte é velha mais bem forte! Nós iremos um a um por causa da carga. Fez uma pausa e continuou – Se a ponte balançar vocês terão o impulso de se encolher, mas não façam isso. Quando ocorrer, estiquem os braços e separem as cordas, assim ela para de balançar e volta a ser estável.
Houve uma demora muito grande para atravessarem a frágil ponte. A francesa teve que ajudar muitos que estavam com medo de passarem. Ela acabou ficando na ponte, próximo a uma extremidade enquanto Oguatá ficava na outra, ajudando todos a passarem.
Apenas Fernanda quase caiu, derrubando sua lanterna, mas o rastreador a segurou firmemente e ficou sem jeito pelo olhar doce que a antropóloga lhe dirigiu. Eles ficaram ali por um tempo, até que Paulo Martins resolveu interromper o momento:
- Já entendi, vão ficar ai o dia inteiro né? – havia um grande sorriso no rosto do escavador – Se fosse possível, gostaria de passar ainda hoje sabe?
- Claro! – a jovem respondeu envergonhada – Vamos indo!
Os outros conseguiram chegar ao outro lado sem muitos problemas e seguiram em frente.
Não demorou muito para eles chegarem ao final do caminho. Logo ouviram os pássaros e chegaram à saída. Era no alto do morro, assim eles podiam ver quase todo o Vale dos Acritós.
Era grande, ou maior que todos presumiam. Possuía uma mata fechada e escura, não muito típica da Mata Atlântica. Possuía um lago que ficava mais ou menos no centro do Vale, com uma pequena ilha de pedras.
Não conseguiam ver nenhuma aldeia, mas podiam ver uma estranha formação à esquerda de onde estavam não muito distante do lago. Eleanor imaginou que podia ser muito bem o Templo e deu ordens para que todos se dirigirem para aquele local. Iriam até a margem e se guiar por lá.
Eles seguiram resolutos por uma trilha embrenhando pela mata, sempre atentos com algum possível encontro com os Acritós. Daniel Dias, o geógrafo, foi analisando o solo para guiá-los até o lago, já que não podiam ver quase nada dentro da densa floresta. Recebia a ajuda de Oguatá que colocou um de seus rastreadores a frente para poder cuidar da navegação terrestre.
Enquanto todos estavam tranqüilos e pensativos; cada um com sua tarefa e pensando no que fariam com os ganhos por aquele grande achado, um Templo Fenício na América; houve um estrondo e, os membros da expedição que se localizavam mais a frente da marcha. Puderam ver nitidamente um tronco de árvore, cheios de estacas caírem sobre o escavador Paulo Martins e dois dos rastreadores.
LeBeau em um impulso tentou correr até eles, mas foi impedida por Oguatá que, bem cuidadosamente, se aproximou da armadilha observando todos os lados antes de voltar-se para os três, que já estavam mortos.
Tocou os corpos, tocou as estacas, passou o dedo em um musgo esverdeado presente nelas e depois lamber e cuspir disse:
- As estacas estão envenenadas, melhor tomarmos cuidado redobrado!
Transtornados, todos demoraram a continuar, a experiente arqueóloga achou que deveriam fazer mais uma pausa, mas voltando o caminho e ficando longe da armadilha, para não serem rastreadas pelos Acritós.
Desta vez Fernanda estava muito abalada, pois nunca tinha visto ninguém morrer antes. Ela estava sobre o efeito do alucinógeno na caverna e não viu quando os antigos companheiros morreram, apenas agora. Joel se aproximou dela para tentar conforta-la e a antropóloga aceitou seu abraço.
- Oguatá? – perguntou Schimidt - Seu nome indígena, não?
- Sim, recebi esse nome da aldeia de minha mãe. Significa andarilho!
- Todo nome tem um significado! O meu, Fernanda, é teutônico e quer dizer ousada, já Schimidt é a palavra germânica para ferreiro.
- Que interessante! – disse o rastreador tentando ser amável – Ficará tudo bem Fernanda. Eu cuidarei de você.
Eu cuidarei de você. Eleanor, observando os dois, refletiu por um tempo sobre aquela frase. Será que Fernando um dia diria isso para ela? Provavelmente não porque LeBeau era não fazia o tipo de moça indefesa. Era muito mais forte que aquilo e de qualquer forma Beto a tinha decepcionado, mas ainda pensava nele. Por quê?
- Não podemos parar toda vez que temos um problema! – pronunciou com cuidado o velho geógrafo – Desculpe, não quero desafiar sua autoridade, mas acho que seria melhor sairmos logo daqui! Já estamos bem perto do lago.
- Tudo bem, Daniel! – a francesa respondeu com um sorriso tão delicado que fez Dias desviar o olhar. Ele tinha uma imagem paternal que a arqueóloga adorava – Só estou dando um tempo para eles, já partiremos. Obrigada pela ajuda!
Logo a expedição se colocou mais uma vez em marcha, agora com o caboclo Joel liderando na frente, passando pelo mesmo local onde a armadilha havia matado três dos seus membros.
- Foi muito prudente voltarmos Doutora LeBeau! – exclamou Oguatá ajoelhado olhando para o chão – Os Acritós estiveram aqui há pouco tempo.
- Como pode ter certeza que são eles? – perguntou Fernanda – Podem ser quaisquer outros índios!
- Está vendo a profundidade dessas pegadas? Se me der o exemplo de outra tribo que tenha em seus integrantes homens com mais de cem quilos e acima de dois metros de altura...
Repentinamente ele parou, houve um perturbador silêncio por alguns instantes.
- Há um fio aqui, estão vendo? – disse o experiente rastreador. – Devia ser para mais algum tipo de armadilha, mas eu desarmei!
Daniel Gonçalves Dias tomou a frente:
- Mas agora esta não pode nos pegar mais. Temos que sair logo desta mata! Vamos!
Ao dizer isso o geógrafo saltou pelo fio e continuou, mas rapidamente afundou no chão e caiu sobre um buraco com mais estaca envenenada. Berrou, tremeu em espasmos involuntários, até finalmente morrer.
Esses Acritós são realmente o maior dos perigos desse maldito vale, Eleanor lembrou do que Dr. Vilela havia lhe dito. Todos se prepararam para continuar com mais cuidado ainda. Mas Joel continuava parado, absorto por um bom tempo.
- O que foi Oguatá? – perguntou LeBeau.
- É o sentido de índio dele – Respondeu outro rastreador – Nunca o vi...
- Todos de costas uns para os outros. Agora! Os malditos estão aqui!
Ao falar isso Joel Oguatá foi alvejado por flechas vindo da mata e caiu ruidosamente no chão, já sem vida. A experiente arqueóloga rapidamente sacou suas pistolas, ela tinha duas 5.7 da Fabrique Nationale. Como alguns da expedição, ela atirou contra a mata tentando acertar os agressores, mas apenas mais flechas zumbiram no ar ao encontro dos membros da expedição.
O ataque foi rápido e esmagador. Flechas voavam de todos os lados sem que ninguém pudesse entender corretamente o que estava acontecendo. Os acritós gritavam escondidos na mata causando mais desespero e confusão. Em pouco tempo quase todos da expedição estavam mortos, o fim parecia inevitável.
A francesa, em um ato impulsivo, se embrenhou na mata para tentar encontrar algum daqueles índios e em meio a toda aquela confusão um tacape se chocou rapidamente com sua cabeça, Eleanor caiu e não conseguiu ver quem a atacou, apenas uma risada, que ela julgou ser feminina, pôde ser percebida antes de desmaiar...



Nota do Autor: O Matintapereira é uma lenda indígena de mal-auguro onde o olhar de uma coruja revela que algo de muito ruim está para acontecer, e realmente coisas muito ruins acontecem no Vale e esse início é muito bom para prever o que aguardava a Eleanor e principalmente a expedição.
O Avasati é um espírito indígena que entra no corpo de uma pessoa enfraquecendo sua mente para que ele possa possuí-la. A forma que é apresentada aqui é uma interpretação totalmente minha.
O ataque dos acritós foi rápido e furtivo, muitos me falaram que eu tirei isso de vários lugares, mas na verdade é assim um ataque indígena. Queria também mostrar logo de cara que os acritós são muito implacáveis e claro estão em seu território o que torna muito difícil combate-los.