domingo, 19 de setembro de 2010

Capítulo VIII - Velho e o Novo

Eleanor acordou muito desorientada, mal sabia onde estava e as lembranças foram sendo recuperadas aos poucos. Lembrou do Ídolo, do Vale, da aldeia, do duelo e ela lembrou dele. Tentou se levantar, mas sentiu uma vertigem terrível e quase desmaiou de novo. No entanto, a arqueóloga se forçou a recuperar seus sentidos, pois sabia que tinha alguém muito próximo dela. Assim, um pouco melhor, virou-se para olhá-lo.
Então aquilo não era uma visão, ele realmente estava ali, ela mal podia acreditar naquilo. O amor de sua vida, que acreditava estar ainda em um boteco no interior de Minas Gerais, estava lá agora, estava lá para cuidar dela! Eleanor olhava admirando-o silenciosamente, ainda tentando provar para si mesma que ele estava lá.
Fernando estava ao seu lado, mascando uma erva que encontrara na mata, para colocar nas escoriações que estavam no corpo dela, fruto do duelo, além de outros ferimentos ainda não curados. Ao terminar, calmamente ele passou a pasta e cobriu usando folhas de bananeira como bandagem.
Ela não mais agüentou. Súbito se levantou agarrando intensamente Fernando e lhe dando um beijo, um beijo há muito tempo desejado. Não a recusou; curiosamente ao contrário dela, ele a ergueu levemente, com carinho extremo, provavelmente pela fragilidade que se encontrava, ou talvez até para acalmá-la.
Eleanor sentiu o tempo parar, o som dos pássaros não era mais ouvido, a dor de seu corpo não era mais sentida e suas preocupações não mais tinham importância. Tudo agora era aquele momento, todos os seus sentidos; passado e futuro perderam seu significado. O tempo passava como uma eternidade agora como se cada segundo fosse uma era...
Ela parou e olhou dentro dos olhos dele, e ainda sentia sua profunda tristeza, mas não importava. Ele a pôs em seu colo e acariciou seus cabelos também olhando nos olhos dela. Aquele olhar que tanto o encantava, e finalmente Fernando relaxou, deixando-se seduzir por aqueles lindos olhos verdes, e novamente a beijou.
Aquilo tudo tinha dado um novo vigor a Eleanor, ela agora se sentia bem o suficiente para enfrentar tudo, sempre trabalhava melhor quando estava apaixonada, costumava dizer. E era verdade, agora a francesa podia enfrentar tudo, os índios, o templo e aquele vale maldito, tudo! Finalmente ela falou:
- Obrigada por ter me ajudado, Dr. Jones!
Fernando sorriu para aquilo, Eleanor sempre foi brincalhona com ele e isso mostrava que estava bem, apesar de todas as privações que passara. Devia estar feliz por vê-lo com o chapéu Cury, pois isso mostrava que estava ali por ela, sabia disso.
Eleanor ainda não tinha percebido que o seu ombro esquerdo estava deslocado e ele deveria distraí-la para colocar no lugar novamente, já que isso iria provocar muita dor.
- Bem, você com essas pistolas, acho que eu deveria chamá-la daquela personagem de vídeo-game!
- Quem? A Lara Croft? Odeio esse...
Crack! Fernando colocou o braço no lugar. Ela tentou dar um berro por isso, mas ele segurou sua boca com as mãos, não podia deixar que os acritós a ouvissem, já foi difícil o suficiente entrar no meio deles e resgatá-la! Quando Eleanor se acalmou decidiu voltar a falar:
- Desculpe mon petite! Tinha que colocar seu braço no lugar.
- Tudo bem, Beto! – respondeu a moça massageando o ombro – Eu acho...
- Venha, não podemos demorar! Carter entrou na construção. Lá é tabu, os acritós não vão seguí-lo.
- O Mike entrou no templo? Droga!
- Não no templo, mas na construção que o protege, o verdadeiro templo é uma câmara secreta lá dentro.
- Então vamos Beto, eu já estou melhor.
Fernando se arrumou, pegou tudo que precisava e deu uma parte de seu equipamento para Eleanor. Tinha vontade de carregar tudo, sabia que ela não estava bem ainda, mas também sabia que sua aluna não aceitaria isso.
Ela olhou para o pouco que Beto tinha entregado e entendeu que a tinha poupado de carregar mais peso. Pensou em reclamar, mas gostou de saber que ele se preocupava. Eleanor também reparou que seu amado tinha algo embrulhado com um pano na sua mochila, parecia uma arma do jeito que estava, mas não perguntou o que era.
Assim, ele começou a caminhar de volta às entradas da construção, sempre tendo cuidado para não cair em uma armadilha. Ao examinar um local, no caminho, Fernando encontrou algo que não devia estar ali.
Um pedaço de vestido estava entre as folhas. Ele reconheceu na hora de quem era àquela roupa Logo suas mãos começaram a tremer e Beto sentiu uma tontura. Lembrou do cheiro e da carne estalando nas chamas. Aquilo estava errado, não havia lógica. Sim, era uma alucinação. As sombras de seu passado ainda o estavam perseguindo. Tinha que se controlar, não podia deixar que sua loucura matasse Eleanor.
Fechou os olhos, respirou fundo e olhou de novo. Não havia nada lá, o pedaço do vestido desaparecera. Beto se acalmou, não podia permitir que Eleanor percebesse que estava tão mal, não queria admitir isso, não podia. Sabia que ele era a base pra ela, se soubesse que estava mal, sua amada cairia também. Sim, sua amada. Aquilo não soava mais estranho e por isso mesmo ficou quieto e continuou o caminho.
Logo chegaram às entradas da construção novamente. Beto se aproximou do meio das passagens, analisando. Eleanor observou que havia uma inscrição e não entendia a língua em que estava escrita. Na verdade reconhecia algumas letras no antigo alfabeto de biblos, usado pelos fenícios; mas sua disposição estava estranha. Finalmente Eleanor perguntou:
- Você sabe o que está escrito?
- Que nada pode ser tirado daqui sem dar algo em troca.
- Hum, tudo tem um preço!
- Sim, Petite. Tudo tem seu preço.
Fernando a chamou de pequena novamente e ela, embora achasse aquilo amável, queria que ele a chamasse de outra forma. De petite amie, de namorada, mas embora Eleanor desejasse muito isso, sabia do profundo carinho que sentia ao chamá-la assim. Então disse:
- Beto? Por onde entraremos?
- A entrada está aberta, foi por onde Mike passou.
Eles se prepararam para entrar. Fernando entregou uma lanterna para Eleanor, para que o ajudasse, e verificou sua arma. A jovem arqueóloga fez o mesmo e olhou sorrindo para a arma dele, um revólver Rossi 851. A mesma arma que sabia que ele tinha desde o inicio de sua carreira, sabia que era algo emocional, mas não sabia ao certo o que. Ela então falou:
- Ainda com essa arma antiga, quantos tiros ela dá? Seis?
- Mais do que suficiente para derrubar qualquer coisa que se mova!
- Sei, claro! Então vamos fazer isso mesmo? Realmente vamos entrar e desvendar o maior mistério desse lugar!
- I dare do all that may become a man! Who dares more is none…
Uma frase da peça Macbeth de William Shakespeare que pode ser traduzida como “Ouso tudo o que convém a um homem. Quem ousaria mais”. Dito isso Fernando se virou para a entrada.
A passagem era escura, sua aparência denunciava tudo o que fora se formando pelo tempo. Sussurros ecoavam por todo o interior, de onde uma brisa gelada causava calafrios nos dois arqueólogos. Há séculos aquilo estava assim, quieto nas sombras, a não ser por eles agora e antes por Mike.
Com alguns passos Eleanor parou e começou a examinar o chão. Era feito de pedras, como paralelepípedos, bem grandes e sem forma definida um do outro. Havia certa dificuldade em observá-los porque estavam cheios de terra e trepadeiras por cima. No entanto se tornava mais fácil ver algumas pegadas de Mike, mas como ela não era rastreadora, não podia dizer ao certo.
Fernando olhava as paredes em volta. Eram esculpidas em pedra, a qual o tempo ainda não destruíra totalmente. Mostrava os cultos e sacrifícios, os quais haviam sido talvez, a função desse local, há muito tempo. Estranhando a demora dela em examinar o chão, ele resolveu quebrar o silêncio e perguntar:
- Algum problema LeBeau?
- Não sei, há alguma armadilha aqui, mas não acho!
Ele olhou atentamente para o local, vira que Eleanor examinava bem o chão, assim Fernando voltou a fitar em volta. Sabia que a falta de experiência dela fazia com que ela se fixasse em apenas num ponto, não vendo o plano geral, porém nada havia lá. Pensou se Mike havia desarmado, já que ele passara, mas também não. Assim, avançando mais um pouco, descobriu.
- É isso! – disse Fernando – Você não viu nada porque a armadilha é o próprio chão!
- Um chão falso, um fosso? Claro, por isso o Mike não desarmou, não tem como!
- Ou isso, ou ele queria que a gente caísse.
- Até eu posso ver alguns rastros dele, é só a gente seguir.
- Os rastros somem ali, quero saber o porquê!
Assim, Fernando pegou sua faca e começou a demarcar qual era a extensão do chão falso. Eleanor se afastou e ficou atenta a tudo, se algo se mexesse era porque ele tinha disparado a armadilha e, preparada, ela tinha mais chances de resgatá-lo, mas nada ocorreu.
- Pronto! Temos que passar por aquela passarela rente à parede, foi assim que aquele estadunidense passou.
- Claro! Por isso você não viu o rastro, vamos então.
Apoiados na passarela eles passaram do lado do fosso, não desarmando-o e nem caindo nele. Isso foi uma tarefa relativamente fácil. Entretanto Eleanor não parava de pensar que estava ali para saquear algo que se encontrava em paz naquele lugar há muito tempo, se sentia como uma ladra ou algo assim. Fernando conhecia bem aquela sensação, já se acostumara com isso. Sabia que estava recuperando aquilo para estudar e conservar, mas dessa vez seria diferente.
Do outro lado da armadilha, tão logo iam caminhando, encontraram outro fosso falso, mas este estava aberto, como se alguém tivesse disparado a armadilha. Eleanor iluminou o fundo com sua lanterna e deu um grito! O fundo estava cheio de estacas e Mike tinha caído nele. Sendo perfurado por quatros estacas, o arqueólogo estadunidense não mais tinha vida. Vendo tudo aquilo, e mais acostumado com esse tipo de situação, Fernando falou:
- Como eu disse, ele não passava de ladrão de tumbas simples!
Eleanor olhou chocada para ele, achou um absurdo ser tão frio assim! Ela odiava o Mike, principalmente por ter feito sua amiga, Fabienne, sofrer tanto por sua causa, entretanto nunca havia desejado que morresse daquela forma, em uma armadilha de um vale esquecido pelo tempo. Era uma morte horrível que Eleanor não desejaria ter, porém quando ainda olhava para o corpo morto, Fernando voltou a falar:
- A armadilha fez a passarela deslizar também! Vamos ter que arrumar outro jeito de passar
- O quê? Ah! Sim, claro. Como?
- Aquela escultura no teto vai nos ajudar!
Havia a estátua de uma mulher sem pernas, como que viesse dos céus. Fernando a conhecia como a lenda indígena de Anabanéri. Uma emissária do Deus Tupã que viaja nos sonhos. A imagem estava bem acima do fosso e assim ele pegou seu chicote e golpeou a estátua de forma que a arma ficasse presa e ambos pudessem se balançar para o outro lado.
Vendo que realmente estava firme, pegou Eleanor nos braços e saltou com o chicote até o outro lado do fosso. Prendeu o cabo do chicote em um entalhe na parede para que depois ela pudesse voltar, decidiu continuar.
A sala terminava ali, tinha uma passagem à esquerda que era a única forma de prosseguir. Uma outra sala, também com chão de pedras, mas esta tinha as pedras todas quadradas e alinhadas perfeitamente. Uma cinza e a outra negra, colocada uma ao lado da outra, em um grande quadrado, como em um jogo de xadrez. Da forma que ele estava vendo, era de quatro colunas por seis linhas. Fernando sabia que aquilo compunha outra armadilha e sabia que tinha que desvendá-la.
- Cada pedra tem um metro, acho que é para passarmos uma por uma, Beto!
- Sim, mas qual é a certa? Não há nada que indique!
- Talvez aquilo indicasse! – disse Eleanor apontando para desenhos indecifráveis na parede. – Parece até um mapa!
- Sim, Petite! Mas está apagada pelo tempo.
- Então vamos ter que confiar em sua perícia, mon amour!
Fernando olhou para ela, achando estranha a forma que se referia a ele. Mas havia gostado daquilo, no fundo. Acariciou os lindos cabelos negros dela e Eleanor lhe deu um suave beijo.
Depois perguntou a ela:
- Por que isso agora?
- Para dar sorte!
Eleanor sorriu e ele se concentrou na tarefa. Como aquilo era algo mais delicado que o fosso por onde passaram! Fernando tirou uma pequena escova, que os arqueólogos usavam para tirar o pó de uma relíquia recém-encontrada. Então removeu toda a sujeira da primeira linha e com a ajuda de uma espátula foi tirando o decalque entre as pedras. Assim pôde claramente ver que as pedras pretas tinham maior profundidade em sua base, ou seja, era nelas que ele devia pisar.
- Então são as pedras pretas? Vamos seguir então!
Falando isso Eleanor prosseguiu, pisando na pedra negra da outra fileira e subitamente caiu. Fernando tentou se esforçar para pegá-la sem se desequilibrar, mas não conseguiu. Assim, com ela agarrada em seus braços, saltou rapidamente para uma pedra cinza ao lado da que sua amada caíra, sabendo que esta deveria estar firme, e realmente estava.
Após o susto ele falou.
- Não, linda! Apenas na primeira linha, vamos ter que averiguar em todas!
E assim foi feito. Linha por linha era analisada, realmente a cor das pedras firmes mudava com o decorrer do trajeto, sem nenhuma ordem lógica. Isso demorou muito e foi bem estressante. Ao passar totalmente pelo corredor de lajotas, havia uma passagem aberta e visivelmente uma outra, espécie de portal de pedra fechado.
Apontando para esse portal, Fernando disse:
- Aqui está o verdadeiro templo, um sarcófago na realidade.
- Como vamos abrir, Beto? É algum mecanismo secreto eu suponho!
- Sim! Mas disso eu cuido, ele fica aberto por pouco tempo, é você que vai entrar e buscar o Ídolo de Ouro.
Na parede adjacente ao portal, havia a estátua de um guerreiro de pedra, que misturava indumentárias da Antigüidade européia e indígena. Fernando teve uma estranha sensação ao ver a escultura, era como se ela também o olhasse. Ele se aproximou dela, e quanto mais próximo chegava, maior era a vertigem que sentia.
Tão logo, Fernando começou a ouvir um som estranho no lugar, como se alguém estivesse cantarolando. Olhou para a passagem aberta e viu o vulto de uma linda mulher de vestido passando rapidamente! Seguiu a sombra e pode ver nitidamente sua amada mãe. Ela se virou para ele com tristeza no olhar e simplesmente pegou fogo!
Fernando começou a tremer, a vertigem aumentou e por pouco o arqueólogo não desmaiou.
Eleanor, ao vê-lo cair, tentou segurá-lo rapidamente. O pôs sentado e percebeu que ele tremia muito. Segurou suas mãos, depois de acalmá-lo, imaginando que poderia estar de alguma forma debilitado, provavelmente pela falta da bebida, e se fosse isso; não saberia como ajudar.
Nunca tinha visto alguém naquele estado em toda sua vida. Ela o conhecia bem, sabia que Beto não demonstrava fraqueza, sentou-se também e decidiu que o esperaria se recuperar sem perguntar nada. Ao invés disso, embora muito preocupada, desviou do assunto falando:
- Nossa, como eu sinto falta de música aqui!
Fernando reagiu a isso sorrindo, já estava melhor. Olhou em volta, os fantasmas de seu passado já não estavam mais ali. Tentou reavaliar como ia fazer tudo aquilo, sabia que não haveria outra forma de realizá-lo, teve medo, mas ao olhar para ela foi preenchido de coragem novamente. A olhou com ternura, pois Eleanor era tudo que ele esperava de uma arqueóloga, não via a si nela, sua antiga aluna era diferente e era disso o que gostava nela. Aquela mulher mostrava que ela tinha uma personalidade forte, iria trilhar seu caminho pelos próprios pés, não seria uma mera sombra dele.
Pensando no que lhe falou, finalmente disse:
- A música cria para nós um passado que ignorávamos e desperta em nós tristezas que tinham sido dissimuladas às nossas lágrimas!
- Hum, isso é Oscar Wilde, não?
Ele olhou para ela admirado e Eleanor retribuiu com um sorriso. Sentiu a tristeza da frase, não tinha como não perceber, mas lembrou-se que a mãe de Fernando era cantora e feliz com aquela recordação perguntou:
- Sua mãe era cantora, não? O que ela cantava mesmo?
O velho arqueólogo se lembrou do pesadelo que o acompanhava e curvou-se, sua expressão mudou drasticamente. Era como se tivesse recebido uma facada, um golpe inesperado. Foi então que finalmente Eleanor ligou os pontos. Era por isso, ela pensou, por isso que ele estava naquele estado quando eles se reencontraram em Minas Gerais, agora tudo fazia sentido.
Compelida por uma imensa dor, ela foi aos braços de Fernando e após o beijar disse:
- Desculpe Beto, eu ainda não...
- Tudo bem, Eleanor! – Interrompeu ele continuando.
- Não tinha como você saber, está tudo bem! Vamos deixar isso de lado. Temos o pior desse lugar para enfrentar agora!
Fernando se levantou, a pôs de pé e arrumou suas coisas. A jovem apaixonada ainda o olhava com extrema pena e ternura, sabia disso, mas como ele mesmo disse, o pior estava por vir, e sorriu tentando tranqüilizá-la. Aproximou-se de Eleanor, tirou seu chapéu Cury colocando nela, e a beijou novamente. A levou firmemente com muita intensidade. Ela sentiu nitidamente toda a profundidade dos sentimentos dele nesse beijo, como se fosse algo muito importante.
- Fique aqui mon petite. – disse Fernando – Eu vou continuar e abrir a passagem. Tenha cuidado!
- Sim, vou ter! Tenha você também, mon amour!
Fernando a deixou, sentia que ele deveria explicar para ela o que iria acontecer, mas não o fez. Se ele assim o fizesse Eleanor não iria aceitar, sabia disso e a sobrevivência de um povo dependia deles.
A deixou e entrou temerariamente na passagem sabendo que encontraria ali o que viera procurar, encontraria seu destino como foi advertido pela Iara. Ao entrar, ele acendeu uma tocha que estava na entrada, e o lugar se iluminou de tal forma que até Eleanor, do corredor, pôde ver o que estava ali.
Era uma câmara realmente enorme. Tinha toda a parede e teto entalhados, um grande poço de água negra no centro, duas enormes estátuas próximas a um altar. Este era magnificamente todo dourado, provavelmente feito de ouro puro. Possuía a imagem de uma cabeça de onça-pintada, envolta por luz solar e em frente a esta uma escadaria com uma formação retangular onde provavelmente eram feitos sacrifícios em homenagem ao desconhecido Deus Onça.
Quando Eleanor ainda estava admirada com aquilo tudo, Fernando notou uma outra passagem, que pela posição que estava, provavelmente ligava a entrada do templo de alguma forma. Ele olhou para ela, averiguando se tinha entrado na sala, mas a francesa estava apenas no corredor da passagem, assim o velho arqueólogo cuidadosamente se aproximou do altar, subindo bem devagar pelas escadas e ficando à frente da imagem do Deus Onça.
Assim que subiu pelas escadas, Eleanor notou que a água negra do poço reagiu, como se tivesse algo lá. Ela sacou suas 5.7 e se preparou caso algo acontecesse. Não entraria na sala como Beto pediu, mas se algo o atacasse ela não hesitaria em atirar, tudo aquilo era muito estranho, a jovem arqueóloga tinha um péssimo pressentimento, sabia que havia algo errado!
Fernando, de frente à imagem, tirou o colar que tinha pegado no barco da ilha. Viu que ele se encaixava perfeitamente na boca da “onça” e, depois de olhar uma última vez para Eleanor, ele colocou o colar onde devia. A imagem reagiu a aquilo, e moveu a “boca” engolindo o colar. Subitamente, a construção começou a tremer, realmente o portal do templo/sarcófago começou a se abrir.
Eleanor viu o olhar que ele deu a ela e sentiu um calafrio, algo estava errado. Sentiu quando tudo começou a tremer, viu o portal se abrindo, mas ao dirigir-se a ele também notou que a passagem que dava para a enorme sala estava se fechando e assim finalmente entendeu. Agora sabia porque Fernando a beijou daquele jeito, o porquê daquele olhar. Ele iria se sacrificar, pela aldeia, por ela.
- Não faça isso comigo, Beto! – Ela gritou.
- Não há outra forma, tudo tem preço!
- Vamos dar outro jeito!
- Não há nada para mim agora Eleanor, já causei mal demais!
- Você tem a mim!
Não houve tempo, a parede se fechou e Eleanor não pôde ser mais ouvida. Fernando jogou todo seu equipamento no chão. Não precisava mais dele, apenas do embrulho que estava em sua mochila, e retirou dele sua antiga escopeta Winchester. Carregando-a, desceu as escadarias caminhando em direção ao poço, que borbulhava naquele momento.
Uma hedionda criatura emergiu do poço e Fernando sabia que era o guardião desse lugar. A besta possuía o corpo todo branco, como um verme gigantesco sem olhos, apenas com uma horrenda boca cheia de dentes afiados como navalhas. Saía uma fumaça dela, dando ao ar um cheiro nauseante e turvando a visão do velho arqueólogo.
Sem aviso ele engatilhou a arma e atirou no monstro que empinou para trás com o impacto, mas essa foi sua única reação. De tão duro que era seu couro, a bala não perfurou sua carne. Fernando sabia que não havia como vencer aquilo, sabia que ali encontraria finalmente o que procurava, sabia que encontraria seu destino. Mas isso não o deteve, e ele engatilhou a arma novamente, atirou e disse:
- Não será tão fácil assim, demônio!
A criatura abriu sua asquerosa boca da qual escorria uma saliva tão negra como o líquido ao redor. O cheiro que saía de suas entranhas era ainda mais nauseante. Ela urrou e soltou uma espécie de baforada contra Fernando que antes do fim não viu sua vida inteira passar. Apenas lembrou-se de uma graphic novel que tinha lido em sua juventude, e uma frase de como a obra terminava.

“O velho morre, a jovem vive. É uma troca justa”.




Nota do Autor: O capítulo mais importante, todos os outros na verdade rumam para esse, finalmente sabemos o que tem no Templo e finalmente vem o desfecho de toda a estória.
O momento mais esperado talvez seja o reencontro de Eleanor e Fernando e eu tentei deixar da maneira mais singela e romântica que a estória me permitia, assim pude suavizar um pouco a carga que o final traria e aumentar ainda mais sua tragédia, o que acredito que tenha sido feito.
A arquitetura do templo vem do Desafio dos Bandeirantes e meu trabalho foi apenas dar vida a aquilo e mostrar como Fernando e Eleanor trabalham como arqueólogos. Muitos se sentirão no Templo da Amazônia do filme, Caçadores da Arca Perdida ou mesmo no final de A Última Cruzada e isso é muito bom.
O monstro no fim é uma antiga e sempre presente lenda brasileira. Há muitas lendas de cobras gigantes, Boitatá, Boiúna e não apenas no Brasil, já que há lendas dessas criaturas, de seres serpentários, na mitologia nórdica, japonesa, babilônica ou asteca, por exemplo. O que aparece na estória é o Minhocão, uma espécie de verme gigante capaz de cuspir piche pelas entranhas. Geralmente, como o Boitatá ele guarda um grande tesouro não permitindo que os fracos o retirem de seu santuário.
Há muitas citações aqui, algumas que talvez vocês nem percebam, sempre tento mostrar a erudição de Fernando dessa forma, já que eu obviamente não entendo do trabalho dele como ele mesmo, é apenas um recurso de escrita e espero que não tenha exagerado nele!
Gostei muito que no fim ele cite uma obra de história em quadrinhos, algo que ele leu por puro desprendimento e prazer e não uma das grandes obras. Isso deu um toque mais singelo e realmente acho que no fim apenas lembramos de coisas simples. A obra é de Frank Miller chamada O Assassino Amarelo do arco de estórias da série Sin City.

domingo, 5 de setembro de 2010

Capítulo VII - Duelo de Amazonas

Eleanor apontava a arma para o que já era um vulto. Apenas uma das pistolas estava fora do coldre. Um reflexo de auto-preservação ao qual estava tão acostumada a seguir a fazia agir por instinto, pois, cansada como estava, ela não mais raciocinava direito. Olhou firmemente para o vulto e gritou:
- Quem está aí, apareça ou eu atiro!
- Hihihi, eu saber você, Eleanor! – respondeu o vulto.
Sem que soubesse, outra pessoa vinha por trás dela. Rapidamente foi agarrada, a arma que estava em sua mão arrancada e Eleanor jogada no chão. Por um tempo ficou caída e de costas para o homem que estava por cima dela, tentando imobilizá-la; porém, conseguiu virar-se com velocidade, assustando seu agressor e retirando sua outra 5.7 do coldre.
- Enough! – disse uma voz que ela reconheceu. – Não quero que vocês a machuca!
Ela quase não acreditava, então era verdade, era realmente verdade! Alex Michael Carter realmente estava ali. Eleanor não o via desde Paris e na realidade não queria vê-lo de novo, mas não podia negar como aquilo era oportuno. Agora tinha que descobrir uma forma de tirar o Ídolo dele e dar um jeito para que ninguém mais incomodasse aquele lugar.
Sim! Tinha uma tarefa quase impossível.
Enquanto pensava, mais homens saíam da mata, eram sete fora Alex! Homens da expedição dele. Alguns machucados e todos já apresentando cansaço pela demanda. Muito armados, pareciam mais jagunços do que arqueólogos, apenas o estadunidense estava com boa aparência, como sempre.
Eleanor o encarou, enquanto se levantava. Tinha esquecido de como ele era bonito. Um alto homem loiro, de olhos verdes. Tinha o corpo de um atleta e realmente era, já que acreditava que isso facilitaria seu trabalho. Era um homem extremamente sedutor quando queria. O sonho das moças da faculdade, quando eram jovens. Tinha um sorriso cativante, e foi com o mesmo que ele começou a falar.
- My Pretty! How you doin?
- Como eu estou? Vá pro inferno, Mike!
- Português? Achei iria poderia falar em minha...
- Chega de papo inútil, cadê o Ídolo?
- Uirapuru? Não comigo!
- Não? – por isso Eleanor não esperava, Mike já estava ali há um bom tempo, como podia não ter encontrado o Ídolo ainda? Será que era uma mentira? Se fosse, por que não fora embora ainda? Teria sido ele quem atacou a aldeia? Eram muitas perguntas para responder, elas precisavam de respostas, e achou melhor começar pela mais simples. – Por que você ainda não está com o Ídolo?
- Easy question, eu ainda não acho o Templo!
- Ainda não, absurdo! Entregue-me o Ídolo!
- Listen, Pretty, muitas armadilhas, eu perder trackers aqui!
Perdeu os rastreadores? – repetiu ela. Estava confusa e repetia o que Michael falava; aquilo a estava incomodando. Lembrou-se do que Beto a dissera naquele boteco em Minas Gerais. Você adquiriu a incrível habilidade de perceber o óbvio! Tentou afastar esse pensamento e perguntou mais para si mesma que para o estadunidense – Como vamos fazer para achar então?
Falando isso, ela guardou as pistolas. Todos da expedição se acalmaram com esse gesto. Eleanor era pequena, mas bem ameaçadora quando queria. Mike se aproximou dela, olhando bem em seus olhos, tentando perturbá-la. Ao ver que não conseguira, começou a falar:
- Sabe, eu não saber o Templo aqui, seria grande ajuda!
- Sei, seria mesmo? Não tem o templo no mapa do diário?
Eleanor sabia que ele estava tentando agradá-la. Mas Mike não sabia como ela conhecia o mapa do diário de Luiz Gaspar de Lemos e Correia, do séc XVII. Sim, é claro, só podia ter falado com o Fernando! Mike o tinha encontrado, mas isso de nada adiantou. Claro, era isso!
- Você esteve com Teacher Vilela?
- Isso importa? Sei que tem um mapa, Mike!
- É um mapa sem... well, words!
- Sem palavras? Deixe-me ver!
Mike mostrou o mapa para ela, e realmente a falta de palavras dificultava muito, pois nenhuma localização no mapa tinha nome, mas a visão acurada de Eleanor lhe mostrara onde o Templo estava logo quando saiu da entrada da caverna. Aquilo era um bom palpite.
- Onde estamos agora?
- Here – respondeu Mike apontando no mapa.
- Ótimo, devemos seguir por ali então!
Assim eles partiram, seguindo pelo caminho indicado por Eleanor. Era um longo trajeto, pois os nove iam lentamente, por causa do cansaço e por medo que os índios os achassem. A mata era muito escura, cheia de sons estranhos e exóticos; ambos, Mike e Eleanor, não tinham estado em uma floresta brasileira antes, tudo era novo para eles.
Não demorou muito e um dos membros da expedição foi acertado por uma flecha, inicialmente todos pensavam estar sob um ataque dos acritós, mas como outras não vieram, julgaram ser uma armadilha. De fato, mais dois membros da expedição caíram em outras armadilhas até anoitecer.
Pararam para finalmente descansar; todos estavam exaustos, pelos mortos, e por mais que estivessem sendo guiados pelo mapa, sentiam sempre que estavam perdidos.
Acharam uma clareira que julgaram ser boa para dormir. Comeram a pouca comida que tinham em suas mochilas. Ninguém se arriscava a procurar por frutas em um lugar com tantas armadilhas e ainda havia os indígenas; todos sempre tinham a sensação de estarem sendo seguidos.
Um esquema de turnos foi criado para que todos pudessem dormir, e estes, um por vez, vigiavam enquanto os outros dormiam. Esse esquema funcionou muito bem, não houve problema até que, bem de madrugada, todos foram acordados por um grito desesperado daquele que estava vigiando naquele momento.
Eleanor acordou e rapidamente sacou as pistolas, seus reflexos não estavam totalmente recuperados, a cabeça ainda doía e desde a briga com a Emanuaçu ela escutava um zumbido agudo. Mas já de pé, viu o homem que estava de vigia sendo arrastado, morto por alguma coisa, ela se aproximou e Mike ligou a lanterna sobre o companheiro.
Aquilo era quase lindo de se ver, quase. O que tinha atacado o homem era uma enorme onça pintada que arrastava o desgraçado e se movimentava silenciosamente, até parar, com a luz sobre ela. Era o animal mais lindo que a francesa já tinha visto, mas sua aparência ficou quase demoníaca quando a luz refletida em seus olhos brilhava em vermelho.
Quase hipnotizada, Eleanor se lembrou da lenda do anhangá, um espírito maligno que se incorpora em animais selvagens deixando seus olhos vermelhos como naquele momento. Sim, toda lenda tinha um porquê e toda lenda possuía uma dose de verdade, ela agora entendia porque os indígenas imaginaram essa mitologia. Apenas luz refletida em seus olhos.
Firmemente, enquanto os outros ainda estavam maravilhados, Eleanor atirou na onça pintada, que embora houvesse levado o tiro, não recuou. Ficou firme encarando ameaçadoramente a arqueóloga. Assim ela efetuou mais três disparos certeiros antes que o animal pudesse sequer reagir e a matou finalmente.
Então disse:
- Vamos enterrar a onça também!
Todos olharam com grande estranhamento para ela, mas a moça sem se importar continuou falando:
- Já vi muitas coisas estranhas nesse Vale! Enterrem o animal.
Depois disso ninguém conseguiu dormir mais. Logo que os primeiros raios de luz surgiram no leste, todos começaram a arrumar suas coisas em silêncio, se preparando para partir. Mike se aproximou de Eleanor, e passando a mão em seu cabelo disse:
- Sabe, é bom você estar aqui, now!
- Se você encostar de novo em mim Mike, vai se arrepender!
- Take it easy, Pretty!
- Eu lembro muito bem o que você fez a Fabienne!
Ela deu as costas a ele, e rapidamente começou a caminhar novamente, o Templo, segundo ela, não estava longe e antes do sol atingir o topo eles chegariam lá. Sim, Eleanor pensou, mas ainda não sabia como iria tirar o Ídolo deles, eram cinco ao todo agora, e estavam muito mais cautelosos.
Os perigos da mata iriam além dos criados pelos acritós aquela noite, todos sabiam disso, agora era como se a floresta estivesse reagindo a eles, como se quisesse impedir que eles encontrassem o Templo. Aquele pensamento os perturbava e ainda havia aquela sensação de estarem sendo seguidos.
Mas todos os temores se foram quando eles viram finalmente o Templo. Era uma estranha construção que já estava parcialmente coberta pela floresta. A felicidade alcançou a todos eles, estavam ali, depois de tudo pelo que passaram, estavam finalmente ali. Apenas Eleanor estava séria, sabia que um Templo como aquele deveria ser difícil de dobrar; câmaras, armadilhas e vários riscos eram escondidos por aquela indefinível arquitetura.
O Templo era feito de pedra e devia ter pouco mais de dez metros de altura, tinha um grande rosto esculpido no alto que as deformidades provocadas pelo tempo e as trepadeiras dificultavam sua visão. Havia duas entradas, uma do lado da outra, de três metros e meio de altura. Ao se aproximarem da entrada da direita, uma espécie de urro bestial foi ouvido vindo de lá de dentro e gelou a espinha de todos.
Mike, rapidamente, pegou o diário e mostrou para Eleanor a única passagem em que Lemos e Correia falava sobre o Templo no diário:

“Foi quando vimos uma estranha construção. Nos aproximamos e vimos que era um templo antigo. Ali! Ali deve estar o tesouro perdido que nos trouxe a este maldito lugar! Porém, quando íamos nos aproximar mais, surgiu um acritó que bradou para que voltássemos, afirmando ser aquele templo tabu, um lugar de morte guardado por um ser terrível. Resolvemos voltar para não termos problemas, mas eu e Maria estamos determinados a voltar lá essa noite”.

Era muito difícil para ambos os arqueólogos traduzirem o diário, pois além da letra existia o problema com a língua. Claro que sabiam falar português, mas o idioma mudou muito do período seicentista até os dias de hoje. Pouca coisa conseguiam decifrar dos escritos e ela se lembrou de Beto mais uma vez. Claro que seu amado professor faria esse trabalho facilmente, mas ele não estava lá. Teria que fazer sozinha e na verdade imaginou que estava fazendo um ótimo trabalho considerando as circunstâncias. Assim, continuou decifrando:

“Louvado seja o Senhor por nos poupar de nossas tolices! Nós vimos a (...) Ela nos viu, quando nos aproximávamos sorrateiramente do Templo durante a noite. (...) e emitiu um urro rouco que me gelou até a medula. Maria e eu corremos sem parar até cairmos de exaustão. Quase desmaiado, entreguei minha alma a Nosso Senhor, mas a criatura não nos seguiu. Louvado seja o Senhor!”

Quando Eleanor ainda analisava o diário, quase não percebeu uma flecha atingindo um membro da expedição. Ninguém mais percebeu enquanto ela tirava suas pistolas e o corpo já morto do homem caía. Pensou em berrar, mas mais flechas vinham, mais homens caíam mortos antes que eles percebessem o que lhes ocorrera. Como sempre, pensou, o ataque dos acritós era perfeito.
Novamente se embrenhou no mato, procurando cobertura até que um dos indígenas apareceu na sua frente. Não, dessa vez ela pensou e atirou nele. Porém ele não parou, ela se lembrou daquela onça e viu a determinação dela no índio, então recuou e começou a disparar suas pistolas contra o acritó, até conseguir matá-lo.
Mais índios foram se aproximando dela, e Eleanor foi descarregando os pentes de suas pistolas neles, derrubando-os até que suas balas acabaram. Tentando recarregar rápido suas armas, escutou um grito, não de dor, mas de ordem. Os acritós se afastaram e ela viu Emanuaçu se aproximar.
As duas se olharam, nenhuma mostrou medo à outra. Elas ficaram andando em círculo, estudando uma à outra com tanta intensidade que ambas ficaram alheias ao que estava acontecendo em sua volta. As duas guerreiras eram admiradas pelos demais acritós, que sequer ousavam intervir.
Emanuaçu jogou o arco e sua aljava no chão, de forma bem declarada, para mostrar que queria enfrentar sua oponente desarmada. Eleanor, embora soubesse que tinha mais chances com suas pistolas, também colocou suas armas no chão, sentiu que devia fazer isso, por honra talvez. Mas na verdade também queria derrotar a acritó no jogo dela!
- Você quer me pegar, não é? – disse Eleanor. – Não vai ser tão fácil dessa vez, posso te garantir isso!
Emanuaçu sorriu, entendeu que fora desafiada e cumprimentou honradamente a oponente. Eleanor retribuiu, criando coragem para si mesma, ela estava com medo, mas lembrou-se de uma vez que Fernando tinha lhe dito que coragem não é simplesmente não ter medo, isso é inconseqüência. Coragem é ter medo e enfrentá-lo, e munida dessa coragem ela atacou a indígena.
Em um golpe de extrema rapidez, que surpreendeu a todos os que estavam assistindo, Eleanor socou firme o rosto de Emanuaçu, que pela velocidade não conseguiu se esquivar. O golpe a pegou em cheio quase a derrubando, obrigando-a a se afastar rapidamente da francesa, para não ser golpeada novamente.
No entanto, Eleanor não avançou, ficou igualmente surpresa com aquilo, ela era treinada em várias lutas, sabia manejar as pistolas e algumas outras armas, mas nunca tinha posto tanto aquilo em prática até aquele maldito Vale. Ela nunca havia sequer atirado em alguém, quanto mais ter que brigar com as próprias mãos contra alguém que certamente era especialista nisso. Alguém que a fazia parecer ainda menor e frágil, mas como um Davi bíblico tinha quase derrubado o seu algoz, seu Golias.
Agora a índia estava mais esperta, não iria voltar a subestimar sua oponente, andava em volta de Eleanor estudando-a calmamente, e esta se admirava por ver Emanuaçu caminhando como uma onça pronta para dar o bote, lenta, mas de passos firmes e decididos. E realmente foi como em um bote que rapidamente a acritó se aproximou, a atacando finalmente.
Emanuaçu agarrou as pernas da arqueóloga, abaixando-se para isso, e com um impulso ela golpeou a sua barriga com os ombros tentando desequilibrá-la. Mas Eleanor agarrou a índia pelas costas e não se deixou cair, pelo contrário! Quase desequilibrou a acritó, que foi forçada a se ajoelhar com uma das pernas para não cair e, aproveitando o pequeno tamanho da francesa, a guerreira indígena passou uma das mãos por entre as pernas dela, erguendo-a e a jogando contra o chão.
Entretanto, Eleanor percebeu o movimento e tentou aparar sua queda como pôde; não teve muito sucesso, mas evitou que caísse de cabeça no chão! Agora as duas estavam engalfinhadas, uma tentando obter uma posição mais favorável que a de sua oponente, tentando dominá-la.
Os acritós que assistiam ao duelo estavam adorando, nunca tinham visto um combate tão difícil para um deles. Cobiçavam Eleanor por isso, já que como acreditavam fielmente na vitória de sua guerreira, sabiam que absorveriam as habilidades da derrotada no ritual antropofágico. Mas receavam que ela seria disputada por toda a tribo!
Ao perceber como era difícil dominar aquela pequena e ágil mulher, Emanuaçu soltou um urro tão aterrorizador que até os pássaros fugiram de medo, e foi ouvido por todos que ali estavam. Se tinha algum índio que ainda não acompanhava o combate, sua atenção foi despertada agora. Elas lutavam como dois felinos, uma onça e uma jaguatirica, imaginaram os acritós.
Eleanor entendera aquilo como um momento de distração e desespero e velozmente puxou um dos braços da acritó fazendo-a cair de costas para o chão e colocando a si mesma em cima de sua oponente, sentando-se em sua barriga e prendendo seus braços no chão.
Ao ver que Emanuaçu era muito forte e logo se soltaria, ela largou os braços da índia e começou a golpear seu rosto, de cima para baixo, dando uma força tremenda aos seus punhos. No início a acritó não sabia como reagir, tentando aparar os golpes, mas como era uma lutadora mais experiente logo viu que deveria esquecer os golpes de sua oponente ignorando a dor e atacá-la.
Assim, a guerreira índia golpeou as costelas da francesa com os dois braços, de modo que ambos pressionassem seu corpo. A dor foi muito forte, fazendo Eleanor se inclinar para trás o suficiente para Emanuaçu sair de baixo dela, porém, ainda no chão, ela passou as pernas por um dos braços da arqueóloga e com as mãos, fazendo um movimento de alavanca, começou a torcê-lo.
A dor era tão forte que Eleanor começara a ter vertigem, sua cabeça estava latejando de dor, sua visão se turvou, tirando seus sentidos aos poucos. Mas o efeito foi diferente do esperado pela índia. Acometida de um instinto selvagem de sobrevivência, a francesa mordeu a perna de Emanuaçu, fazendo com que ela a soltasse rapidamente, mas não teve tempo de se proteger, estava exausta.
A acritó montou em cima dela, imobilizando seu corpo, primeiramente para descansar, pois também estava exaurida e sua perna doía muito. Entretanto, para não dar o mesmo refresco a sua oponente, Emanuaçu inclinou seu corpo por cima do rosto de Eleanor de forma que a francesa não pudesse respirar direito, cuidando para desmaiar sua oponente, pois não queria matá-la, já que esta deveria participar do ritual.
Ela era sem dúvida uma adversária de valor.
Desesperada, Eleanor começou a se debater em vão, a força da acritó era muita. A dor na sua cabeça começou a aumentar à medida que ia sendo sufocada, sua visão foi ficando preta, perdendo gradualmente todos os seus sentidos; mas quando achava que não teria mais como suportar, Emanuaçu se levantou sem aviso. Eleanor já quase inconsciente olhou em volta, como uma criança pedindo socorro.
Olhou e podia avistar o vulto de um homem grande; só conseguiu perceber que usava uma jaqueta e chapéu. Ele estava enrolando uma corda ou talvez um chicote. De repente ela o reconheceu, não, não podia ser real, mas ele estava ali à frente, todavia, antes de entender o que acabara de acontecer, ela desmaiou.



Nota do Autor: O título desse capítulo foi brilhantemente criado pelo Goldfield e declara o ponto forte do capítulo e uma das passagens mais marcantes de minha estória, de fato esse é o único combate que eu realmente gostei de escrever e acredito que tenha ficado bom. Talvez pra quem nunca tenha feito uma luta com agarramentos, esse duelo tenha sido meio confuso, mas de qualquer forma isso é natural, acredito que se vocês estivessem lá ao vivo, também achariam tudo muito confuso!
Aqui finalmente podemos conhecer um pouco melhor o personagem Mike, muito inspirado em um estadunidense que eu conheço, no seu jeito de falar, mas seu questionável caráter é fruto de minha mente apenas e claro do personagem Beloq dos Caçadores da Arca Perdida.
Um diário com um mapa sem palavras é uma clara homenagem ao Diário do Graal de Dr. Henry Jones no filme Indiana Jones e a Última Cruzada.
A onça pintada devia ser enterrada como no costume indígena, pois se isso não for feito, se um animal morrer de forma tão desrespeitosa, os seres da floresta podem se enraivecer e um Caipora pode cobrar o insulto.
Lenda indígena que tem várias formas e nomes diferentes em inúmeras regiões da América do Sul, o Caipora protege os animais e não deixa que os homens o matem em caçadas sem sentido.