domingo, 19 de setembro de 2010

Capítulo VIII - Velho e o Novo

Eleanor acordou muito desorientada, mal sabia onde estava e as lembranças foram sendo recuperadas aos poucos. Lembrou do Ídolo, do Vale, da aldeia, do duelo e ela lembrou dele. Tentou se levantar, mas sentiu uma vertigem terrível e quase desmaiou de novo. No entanto, a arqueóloga se forçou a recuperar seus sentidos, pois sabia que tinha alguém muito próximo dela. Assim, um pouco melhor, virou-se para olhá-lo.
Então aquilo não era uma visão, ele realmente estava ali, ela mal podia acreditar naquilo. O amor de sua vida, que acreditava estar ainda em um boteco no interior de Minas Gerais, estava lá agora, estava lá para cuidar dela! Eleanor olhava admirando-o silenciosamente, ainda tentando provar para si mesma que ele estava lá.
Fernando estava ao seu lado, mascando uma erva que encontrara na mata, para colocar nas escoriações que estavam no corpo dela, fruto do duelo, além de outros ferimentos ainda não curados. Ao terminar, calmamente ele passou a pasta e cobriu usando folhas de bananeira como bandagem.
Ela não mais agüentou. Súbito se levantou agarrando intensamente Fernando e lhe dando um beijo, um beijo há muito tempo desejado. Não a recusou; curiosamente ao contrário dela, ele a ergueu levemente, com carinho extremo, provavelmente pela fragilidade que se encontrava, ou talvez até para acalmá-la.
Eleanor sentiu o tempo parar, o som dos pássaros não era mais ouvido, a dor de seu corpo não era mais sentida e suas preocupações não mais tinham importância. Tudo agora era aquele momento, todos os seus sentidos; passado e futuro perderam seu significado. O tempo passava como uma eternidade agora como se cada segundo fosse uma era...
Ela parou e olhou dentro dos olhos dele, e ainda sentia sua profunda tristeza, mas não importava. Ele a pôs em seu colo e acariciou seus cabelos também olhando nos olhos dela. Aquele olhar que tanto o encantava, e finalmente Fernando relaxou, deixando-se seduzir por aqueles lindos olhos verdes, e novamente a beijou.
Aquilo tudo tinha dado um novo vigor a Eleanor, ela agora se sentia bem o suficiente para enfrentar tudo, sempre trabalhava melhor quando estava apaixonada, costumava dizer. E era verdade, agora a francesa podia enfrentar tudo, os índios, o templo e aquele vale maldito, tudo! Finalmente ela falou:
- Obrigada por ter me ajudado, Dr. Jones!
Fernando sorriu para aquilo, Eleanor sempre foi brincalhona com ele e isso mostrava que estava bem, apesar de todas as privações que passara. Devia estar feliz por vê-lo com o chapéu Cury, pois isso mostrava que estava ali por ela, sabia disso.
Eleanor ainda não tinha percebido que o seu ombro esquerdo estava deslocado e ele deveria distraí-la para colocar no lugar novamente, já que isso iria provocar muita dor.
- Bem, você com essas pistolas, acho que eu deveria chamá-la daquela personagem de vídeo-game!
- Quem? A Lara Croft? Odeio esse...
Crack! Fernando colocou o braço no lugar. Ela tentou dar um berro por isso, mas ele segurou sua boca com as mãos, não podia deixar que os acritós a ouvissem, já foi difícil o suficiente entrar no meio deles e resgatá-la! Quando Eleanor se acalmou decidiu voltar a falar:
- Desculpe mon petite! Tinha que colocar seu braço no lugar.
- Tudo bem, Beto! – respondeu a moça massageando o ombro – Eu acho...
- Venha, não podemos demorar! Carter entrou na construção. Lá é tabu, os acritós não vão seguí-lo.
- O Mike entrou no templo? Droga!
- Não no templo, mas na construção que o protege, o verdadeiro templo é uma câmara secreta lá dentro.
- Então vamos Beto, eu já estou melhor.
Fernando se arrumou, pegou tudo que precisava e deu uma parte de seu equipamento para Eleanor. Tinha vontade de carregar tudo, sabia que ela não estava bem ainda, mas também sabia que sua aluna não aceitaria isso.
Ela olhou para o pouco que Beto tinha entregado e entendeu que a tinha poupado de carregar mais peso. Pensou em reclamar, mas gostou de saber que ele se preocupava. Eleanor também reparou que seu amado tinha algo embrulhado com um pano na sua mochila, parecia uma arma do jeito que estava, mas não perguntou o que era.
Assim, ele começou a caminhar de volta às entradas da construção, sempre tendo cuidado para não cair em uma armadilha. Ao examinar um local, no caminho, Fernando encontrou algo que não devia estar ali.
Um pedaço de vestido estava entre as folhas. Ele reconheceu na hora de quem era àquela roupa Logo suas mãos começaram a tremer e Beto sentiu uma tontura. Lembrou do cheiro e da carne estalando nas chamas. Aquilo estava errado, não havia lógica. Sim, era uma alucinação. As sombras de seu passado ainda o estavam perseguindo. Tinha que se controlar, não podia deixar que sua loucura matasse Eleanor.
Fechou os olhos, respirou fundo e olhou de novo. Não havia nada lá, o pedaço do vestido desaparecera. Beto se acalmou, não podia permitir que Eleanor percebesse que estava tão mal, não queria admitir isso, não podia. Sabia que ele era a base pra ela, se soubesse que estava mal, sua amada cairia também. Sim, sua amada. Aquilo não soava mais estranho e por isso mesmo ficou quieto e continuou o caminho.
Logo chegaram às entradas da construção novamente. Beto se aproximou do meio das passagens, analisando. Eleanor observou que havia uma inscrição e não entendia a língua em que estava escrita. Na verdade reconhecia algumas letras no antigo alfabeto de biblos, usado pelos fenícios; mas sua disposição estava estranha. Finalmente Eleanor perguntou:
- Você sabe o que está escrito?
- Que nada pode ser tirado daqui sem dar algo em troca.
- Hum, tudo tem um preço!
- Sim, Petite. Tudo tem seu preço.
Fernando a chamou de pequena novamente e ela, embora achasse aquilo amável, queria que ele a chamasse de outra forma. De petite amie, de namorada, mas embora Eleanor desejasse muito isso, sabia do profundo carinho que sentia ao chamá-la assim. Então disse:
- Beto? Por onde entraremos?
- A entrada está aberta, foi por onde Mike passou.
Eles se prepararam para entrar. Fernando entregou uma lanterna para Eleanor, para que o ajudasse, e verificou sua arma. A jovem arqueóloga fez o mesmo e olhou sorrindo para a arma dele, um revólver Rossi 851. A mesma arma que sabia que ele tinha desde o inicio de sua carreira, sabia que era algo emocional, mas não sabia ao certo o que. Ela então falou:
- Ainda com essa arma antiga, quantos tiros ela dá? Seis?
- Mais do que suficiente para derrubar qualquer coisa que se mova!
- Sei, claro! Então vamos fazer isso mesmo? Realmente vamos entrar e desvendar o maior mistério desse lugar!
- I dare do all that may become a man! Who dares more is none…
Uma frase da peça Macbeth de William Shakespeare que pode ser traduzida como “Ouso tudo o que convém a um homem. Quem ousaria mais”. Dito isso Fernando se virou para a entrada.
A passagem era escura, sua aparência denunciava tudo o que fora se formando pelo tempo. Sussurros ecoavam por todo o interior, de onde uma brisa gelada causava calafrios nos dois arqueólogos. Há séculos aquilo estava assim, quieto nas sombras, a não ser por eles agora e antes por Mike.
Com alguns passos Eleanor parou e começou a examinar o chão. Era feito de pedras, como paralelepípedos, bem grandes e sem forma definida um do outro. Havia certa dificuldade em observá-los porque estavam cheios de terra e trepadeiras por cima. No entanto se tornava mais fácil ver algumas pegadas de Mike, mas como ela não era rastreadora, não podia dizer ao certo.
Fernando olhava as paredes em volta. Eram esculpidas em pedra, a qual o tempo ainda não destruíra totalmente. Mostrava os cultos e sacrifícios, os quais haviam sido talvez, a função desse local, há muito tempo. Estranhando a demora dela em examinar o chão, ele resolveu quebrar o silêncio e perguntar:
- Algum problema LeBeau?
- Não sei, há alguma armadilha aqui, mas não acho!
Ele olhou atentamente para o local, vira que Eleanor examinava bem o chão, assim Fernando voltou a fitar em volta. Sabia que a falta de experiência dela fazia com que ela se fixasse em apenas num ponto, não vendo o plano geral, porém nada havia lá. Pensou se Mike havia desarmado, já que ele passara, mas também não. Assim, avançando mais um pouco, descobriu.
- É isso! – disse Fernando – Você não viu nada porque a armadilha é o próprio chão!
- Um chão falso, um fosso? Claro, por isso o Mike não desarmou, não tem como!
- Ou isso, ou ele queria que a gente caísse.
- Até eu posso ver alguns rastros dele, é só a gente seguir.
- Os rastros somem ali, quero saber o porquê!
Assim, Fernando pegou sua faca e começou a demarcar qual era a extensão do chão falso. Eleanor se afastou e ficou atenta a tudo, se algo se mexesse era porque ele tinha disparado a armadilha e, preparada, ela tinha mais chances de resgatá-lo, mas nada ocorreu.
- Pronto! Temos que passar por aquela passarela rente à parede, foi assim que aquele estadunidense passou.
- Claro! Por isso você não viu o rastro, vamos então.
Apoiados na passarela eles passaram do lado do fosso, não desarmando-o e nem caindo nele. Isso foi uma tarefa relativamente fácil. Entretanto Eleanor não parava de pensar que estava ali para saquear algo que se encontrava em paz naquele lugar há muito tempo, se sentia como uma ladra ou algo assim. Fernando conhecia bem aquela sensação, já se acostumara com isso. Sabia que estava recuperando aquilo para estudar e conservar, mas dessa vez seria diferente.
Do outro lado da armadilha, tão logo iam caminhando, encontraram outro fosso falso, mas este estava aberto, como se alguém tivesse disparado a armadilha. Eleanor iluminou o fundo com sua lanterna e deu um grito! O fundo estava cheio de estacas e Mike tinha caído nele. Sendo perfurado por quatros estacas, o arqueólogo estadunidense não mais tinha vida. Vendo tudo aquilo, e mais acostumado com esse tipo de situação, Fernando falou:
- Como eu disse, ele não passava de ladrão de tumbas simples!
Eleanor olhou chocada para ele, achou um absurdo ser tão frio assim! Ela odiava o Mike, principalmente por ter feito sua amiga, Fabienne, sofrer tanto por sua causa, entretanto nunca havia desejado que morresse daquela forma, em uma armadilha de um vale esquecido pelo tempo. Era uma morte horrível que Eleanor não desejaria ter, porém quando ainda olhava para o corpo morto, Fernando voltou a falar:
- A armadilha fez a passarela deslizar também! Vamos ter que arrumar outro jeito de passar
- O quê? Ah! Sim, claro. Como?
- Aquela escultura no teto vai nos ajudar!
Havia a estátua de uma mulher sem pernas, como que viesse dos céus. Fernando a conhecia como a lenda indígena de Anabanéri. Uma emissária do Deus Tupã que viaja nos sonhos. A imagem estava bem acima do fosso e assim ele pegou seu chicote e golpeou a estátua de forma que a arma ficasse presa e ambos pudessem se balançar para o outro lado.
Vendo que realmente estava firme, pegou Eleanor nos braços e saltou com o chicote até o outro lado do fosso. Prendeu o cabo do chicote em um entalhe na parede para que depois ela pudesse voltar, decidiu continuar.
A sala terminava ali, tinha uma passagem à esquerda que era a única forma de prosseguir. Uma outra sala, também com chão de pedras, mas esta tinha as pedras todas quadradas e alinhadas perfeitamente. Uma cinza e a outra negra, colocada uma ao lado da outra, em um grande quadrado, como em um jogo de xadrez. Da forma que ele estava vendo, era de quatro colunas por seis linhas. Fernando sabia que aquilo compunha outra armadilha e sabia que tinha que desvendá-la.
- Cada pedra tem um metro, acho que é para passarmos uma por uma, Beto!
- Sim, mas qual é a certa? Não há nada que indique!
- Talvez aquilo indicasse! – disse Eleanor apontando para desenhos indecifráveis na parede. – Parece até um mapa!
- Sim, Petite! Mas está apagada pelo tempo.
- Então vamos ter que confiar em sua perícia, mon amour!
Fernando olhou para ela, achando estranha a forma que se referia a ele. Mas havia gostado daquilo, no fundo. Acariciou os lindos cabelos negros dela e Eleanor lhe deu um suave beijo.
Depois perguntou a ela:
- Por que isso agora?
- Para dar sorte!
Eleanor sorriu e ele se concentrou na tarefa. Como aquilo era algo mais delicado que o fosso por onde passaram! Fernando tirou uma pequena escova, que os arqueólogos usavam para tirar o pó de uma relíquia recém-encontrada. Então removeu toda a sujeira da primeira linha e com a ajuda de uma espátula foi tirando o decalque entre as pedras. Assim pôde claramente ver que as pedras pretas tinham maior profundidade em sua base, ou seja, era nelas que ele devia pisar.
- Então são as pedras pretas? Vamos seguir então!
Falando isso Eleanor prosseguiu, pisando na pedra negra da outra fileira e subitamente caiu. Fernando tentou se esforçar para pegá-la sem se desequilibrar, mas não conseguiu. Assim, com ela agarrada em seus braços, saltou rapidamente para uma pedra cinza ao lado da que sua amada caíra, sabendo que esta deveria estar firme, e realmente estava.
Após o susto ele falou.
- Não, linda! Apenas na primeira linha, vamos ter que averiguar em todas!
E assim foi feito. Linha por linha era analisada, realmente a cor das pedras firmes mudava com o decorrer do trajeto, sem nenhuma ordem lógica. Isso demorou muito e foi bem estressante. Ao passar totalmente pelo corredor de lajotas, havia uma passagem aberta e visivelmente uma outra, espécie de portal de pedra fechado.
Apontando para esse portal, Fernando disse:
- Aqui está o verdadeiro templo, um sarcófago na realidade.
- Como vamos abrir, Beto? É algum mecanismo secreto eu suponho!
- Sim! Mas disso eu cuido, ele fica aberto por pouco tempo, é você que vai entrar e buscar o Ídolo de Ouro.
Na parede adjacente ao portal, havia a estátua de um guerreiro de pedra, que misturava indumentárias da Antigüidade européia e indígena. Fernando teve uma estranha sensação ao ver a escultura, era como se ela também o olhasse. Ele se aproximou dela, e quanto mais próximo chegava, maior era a vertigem que sentia.
Tão logo, Fernando começou a ouvir um som estranho no lugar, como se alguém estivesse cantarolando. Olhou para a passagem aberta e viu o vulto de uma linda mulher de vestido passando rapidamente! Seguiu a sombra e pode ver nitidamente sua amada mãe. Ela se virou para ele com tristeza no olhar e simplesmente pegou fogo!
Fernando começou a tremer, a vertigem aumentou e por pouco o arqueólogo não desmaiou.
Eleanor, ao vê-lo cair, tentou segurá-lo rapidamente. O pôs sentado e percebeu que ele tremia muito. Segurou suas mãos, depois de acalmá-lo, imaginando que poderia estar de alguma forma debilitado, provavelmente pela falta da bebida, e se fosse isso; não saberia como ajudar.
Nunca tinha visto alguém naquele estado em toda sua vida. Ela o conhecia bem, sabia que Beto não demonstrava fraqueza, sentou-se também e decidiu que o esperaria se recuperar sem perguntar nada. Ao invés disso, embora muito preocupada, desviou do assunto falando:
- Nossa, como eu sinto falta de música aqui!
Fernando reagiu a isso sorrindo, já estava melhor. Olhou em volta, os fantasmas de seu passado já não estavam mais ali. Tentou reavaliar como ia fazer tudo aquilo, sabia que não haveria outra forma de realizá-lo, teve medo, mas ao olhar para ela foi preenchido de coragem novamente. A olhou com ternura, pois Eleanor era tudo que ele esperava de uma arqueóloga, não via a si nela, sua antiga aluna era diferente e era disso o que gostava nela. Aquela mulher mostrava que ela tinha uma personalidade forte, iria trilhar seu caminho pelos próprios pés, não seria uma mera sombra dele.
Pensando no que lhe falou, finalmente disse:
- A música cria para nós um passado que ignorávamos e desperta em nós tristezas que tinham sido dissimuladas às nossas lágrimas!
- Hum, isso é Oscar Wilde, não?
Ele olhou para ela admirado e Eleanor retribuiu com um sorriso. Sentiu a tristeza da frase, não tinha como não perceber, mas lembrou-se que a mãe de Fernando era cantora e feliz com aquela recordação perguntou:
- Sua mãe era cantora, não? O que ela cantava mesmo?
O velho arqueólogo se lembrou do pesadelo que o acompanhava e curvou-se, sua expressão mudou drasticamente. Era como se tivesse recebido uma facada, um golpe inesperado. Foi então que finalmente Eleanor ligou os pontos. Era por isso, ela pensou, por isso que ele estava naquele estado quando eles se reencontraram em Minas Gerais, agora tudo fazia sentido.
Compelida por uma imensa dor, ela foi aos braços de Fernando e após o beijar disse:
- Desculpe Beto, eu ainda não...
- Tudo bem, Eleanor! – Interrompeu ele continuando.
- Não tinha como você saber, está tudo bem! Vamos deixar isso de lado. Temos o pior desse lugar para enfrentar agora!
Fernando se levantou, a pôs de pé e arrumou suas coisas. A jovem apaixonada ainda o olhava com extrema pena e ternura, sabia disso, mas como ele mesmo disse, o pior estava por vir, e sorriu tentando tranqüilizá-la. Aproximou-se de Eleanor, tirou seu chapéu Cury colocando nela, e a beijou novamente. A levou firmemente com muita intensidade. Ela sentiu nitidamente toda a profundidade dos sentimentos dele nesse beijo, como se fosse algo muito importante.
- Fique aqui mon petite. – disse Fernando – Eu vou continuar e abrir a passagem. Tenha cuidado!
- Sim, vou ter! Tenha você também, mon amour!
Fernando a deixou, sentia que ele deveria explicar para ela o que iria acontecer, mas não o fez. Se ele assim o fizesse Eleanor não iria aceitar, sabia disso e a sobrevivência de um povo dependia deles.
A deixou e entrou temerariamente na passagem sabendo que encontraria ali o que viera procurar, encontraria seu destino como foi advertido pela Iara. Ao entrar, ele acendeu uma tocha que estava na entrada, e o lugar se iluminou de tal forma que até Eleanor, do corredor, pôde ver o que estava ali.
Era uma câmara realmente enorme. Tinha toda a parede e teto entalhados, um grande poço de água negra no centro, duas enormes estátuas próximas a um altar. Este era magnificamente todo dourado, provavelmente feito de ouro puro. Possuía a imagem de uma cabeça de onça-pintada, envolta por luz solar e em frente a esta uma escadaria com uma formação retangular onde provavelmente eram feitos sacrifícios em homenagem ao desconhecido Deus Onça.
Quando Eleanor ainda estava admirada com aquilo tudo, Fernando notou uma outra passagem, que pela posição que estava, provavelmente ligava a entrada do templo de alguma forma. Ele olhou para ela, averiguando se tinha entrado na sala, mas a francesa estava apenas no corredor da passagem, assim o velho arqueólogo cuidadosamente se aproximou do altar, subindo bem devagar pelas escadas e ficando à frente da imagem do Deus Onça.
Assim que subiu pelas escadas, Eleanor notou que a água negra do poço reagiu, como se tivesse algo lá. Ela sacou suas 5.7 e se preparou caso algo acontecesse. Não entraria na sala como Beto pediu, mas se algo o atacasse ela não hesitaria em atirar, tudo aquilo era muito estranho, a jovem arqueóloga tinha um péssimo pressentimento, sabia que havia algo errado!
Fernando, de frente à imagem, tirou o colar que tinha pegado no barco da ilha. Viu que ele se encaixava perfeitamente na boca da “onça” e, depois de olhar uma última vez para Eleanor, ele colocou o colar onde devia. A imagem reagiu a aquilo, e moveu a “boca” engolindo o colar. Subitamente, a construção começou a tremer, realmente o portal do templo/sarcófago começou a se abrir.
Eleanor viu o olhar que ele deu a ela e sentiu um calafrio, algo estava errado. Sentiu quando tudo começou a tremer, viu o portal se abrindo, mas ao dirigir-se a ele também notou que a passagem que dava para a enorme sala estava se fechando e assim finalmente entendeu. Agora sabia porque Fernando a beijou daquele jeito, o porquê daquele olhar. Ele iria se sacrificar, pela aldeia, por ela.
- Não faça isso comigo, Beto! – Ela gritou.
- Não há outra forma, tudo tem preço!
- Vamos dar outro jeito!
- Não há nada para mim agora Eleanor, já causei mal demais!
- Você tem a mim!
Não houve tempo, a parede se fechou e Eleanor não pôde ser mais ouvida. Fernando jogou todo seu equipamento no chão. Não precisava mais dele, apenas do embrulho que estava em sua mochila, e retirou dele sua antiga escopeta Winchester. Carregando-a, desceu as escadarias caminhando em direção ao poço, que borbulhava naquele momento.
Uma hedionda criatura emergiu do poço e Fernando sabia que era o guardião desse lugar. A besta possuía o corpo todo branco, como um verme gigantesco sem olhos, apenas com uma horrenda boca cheia de dentes afiados como navalhas. Saía uma fumaça dela, dando ao ar um cheiro nauseante e turvando a visão do velho arqueólogo.
Sem aviso ele engatilhou a arma e atirou no monstro que empinou para trás com o impacto, mas essa foi sua única reação. De tão duro que era seu couro, a bala não perfurou sua carne. Fernando sabia que não havia como vencer aquilo, sabia que ali encontraria finalmente o que procurava, sabia que encontraria seu destino. Mas isso não o deteve, e ele engatilhou a arma novamente, atirou e disse:
- Não será tão fácil assim, demônio!
A criatura abriu sua asquerosa boca da qual escorria uma saliva tão negra como o líquido ao redor. O cheiro que saía de suas entranhas era ainda mais nauseante. Ela urrou e soltou uma espécie de baforada contra Fernando que antes do fim não viu sua vida inteira passar. Apenas lembrou-se de uma graphic novel que tinha lido em sua juventude, e uma frase de como a obra terminava.

“O velho morre, a jovem vive. É uma troca justa”.




Nota do Autor: O capítulo mais importante, todos os outros na verdade rumam para esse, finalmente sabemos o que tem no Templo e finalmente vem o desfecho de toda a estória.
O momento mais esperado talvez seja o reencontro de Eleanor e Fernando e eu tentei deixar da maneira mais singela e romântica que a estória me permitia, assim pude suavizar um pouco a carga que o final traria e aumentar ainda mais sua tragédia, o que acredito que tenha sido feito.
A arquitetura do templo vem do Desafio dos Bandeirantes e meu trabalho foi apenas dar vida a aquilo e mostrar como Fernando e Eleanor trabalham como arqueólogos. Muitos se sentirão no Templo da Amazônia do filme, Caçadores da Arca Perdida ou mesmo no final de A Última Cruzada e isso é muito bom.
O monstro no fim é uma antiga e sempre presente lenda brasileira. Há muitas lendas de cobras gigantes, Boitatá, Boiúna e não apenas no Brasil, já que há lendas dessas criaturas, de seres serpentários, na mitologia nórdica, japonesa, babilônica ou asteca, por exemplo. O que aparece na estória é o Minhocão, uma espécie de verme gigante capaz de cuspir piche pelas entranhas. Geralmente, como o Boitatá ele guarda um grande tesouro não permitindo que os fracos o retirem de seu santuário.
Há muitas citações aqui, algumas que talvez vocês nem percebam, sempre tento mostrar a erudição de Fernando dessa forma, já que eu obviamente não entendo do trabalho dele como ele mesmo, é apenas um recurso de escrita e espero que não tenha exagerado nele!
Gostei muito que no fim ele cite uma obra de história em quadrinhos, algo que ele leu por puro desprendimento e prazer e não uma das grandes obras. Isso deu um toque mais singelo e realmente acho que no fim apenas lembramos de coisas simples. A obra é de Frank Miller chamada O Assassino Amarelo do arco de estórias da série Sin City.

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