quarta-feira, 9 de junho de 2010

Capítulo VI - Retorno de Maramuzan

A primeira coisa que sentiu foi o cheiro. O cheiro era muito forte! O som da carne estalando no fogo logo foi abafado por aqueles gritos horrendos! Não queria olhar, na verdade não conseguia olhar, mas eles o forçaram! Aquela era a visão mais aterradora que um homem poderia ter em sua vida. Toda a coragem e firmeza que habitavam seu interior foram substituídas pela loucura e pelo desespero!
Súbito, ele acordou. Tinha esse terrível pesadelo todas as noites e era tão terrível, que por muito tempo preferia a insônia do que enfrentar aquilo. Estava duro, não conseguia se mover, nem falar, pois seu corpo não correspondia mais aos seus comandos. Tinha que fazer uma força imensa para reagir. Há muito já havia desistido, mas agora tudo dependia dele, agora ela dependia dele e isso lhe dava forças para sair daquele estado.
- Levanta velho! – disse para si mesmo. – Eu sou Fernando Roberto Vilela, e isso não vai me deter!
Dito isso, Fernando se levantou, uma vez de pé, olhou em volta e lembrou que estava em uma caverna, na entrada do Vale dos Acritós. O caminho da esquerda, mais longo, mas que o levaria à Ilha no centro do vale, exatamente aonde queria ir. Embora ainda não muito consciente, devido à abstinência da bebida, ele continuou, descendo a caverna, agora seguindo pela margem de um pequeno rio subterrâneo.
Ao longo do caminho vira, bem no alto, uma ponte pênsil, a notou porque ouvira um som, havia alguma expedição passando por ela, pois via vários feixes de luzes. Fernando sabia que era a dela, só poderia ser de sua pequena. Os sons das vozes estavam muito longe para que Fernando a reconhecesse, mas tinha certeza de que era Eleanor. Sua aluna que o tinha convencido a vir àquele maldito vale novamente afinal. Alisou mais uma vez o chapéu Cury e sentiu sua presença tão próxima que quase podia vê-la...
Repentinamente algo caiu próximo a ele, era uma lanterna, não como aquelas com imã como a usada por escavadores, mas uma mais simples, e aquilo era no mínimo estranho. Achou melhor se esconder, embora não acreditasse que pudesse ser visto naquela escuridão. Deixou que a expedição passasse e continuou pelo caminho.
Fernando era um exímio rastreador. Quando passou pela bifurcação que existia próximo à entrada, ele havia rastreado a expedição de Alex Michael Carter, indo para o caminho da esquerda. No entanto, percebera agora que Eleanor devia ter cometido o erro de ir pela passagem da direita, ela não era rastreadora, embora com certeza tivesse contratado um, mas não tão bom quanto Alex ou o próprio Fernando. Logo ele deveria apagar seus próprios rastros e seguir.
O caminho era muito longo e quando já pensava em parar, terminou em um ponto onde não havia margem para o rio, ele analisando aquilo deduziu que só poderia existir uma passagem por debaixo d’água, assim Fernando resolveu descansar para só depois prosseguir.
Após um tempo colocou todas as suas coisas em sua mochila, já que ela era impermeável, teve todo o cuidado ao guardar o seu chapéu. Depois de tudo pronto entrou na água, e como previa realmente havia uma passagem submersa, e por ali seguiu.
Nadando por um longo túnel, Fernando já estava quase sem fôlego quando finalmente percebeu uma margem no alto e imaginou que se encontrava no caminho correto. Ele estava certo, saindo da água pôde ver uma grande câmara, onde um grande e velho barco estava encalhado, quase não o percebeu porque estava muito escuro e tinha que sair da água para pegar a lanterna.
Mal conseguiu examinar o lugar, percebeu criaturas imersas na água, não podia vê-las totalmente, apenas suas silhuetas, mas a forma com que elas se moviam não era natural. Pareciam pessoas, mas os sons que emanavam, a forma como seus vultos se portavam, davam um ar bestial a elas.
Fernando tentava sair da água, e pegar sua arma que estava dentro da mochila, mas obviamente as criaturas se moviam mais rápido! Logo chegaram nele e o agarraram puxando-o para debaixo d’água. Ele bateu em uma das criaturas, tentando atingir sua barriga, mas a pele de seu oponente era dura demais, como se fosse o couro de um jacaré.
Seria isso possível? Pensou. Fernando estudara bem as lendas indígenas, era um profundo conhecedor, e claro, conhecia a lenda de um povo anfíbio que vivia nas águas, sempre próximo à terra, pois se alimentava de gente. Sim ele conhecia bem a lenda dos Igupiaras.
Assim, pegou sua faca de sobrevivência, uma Commander II, e cravou entre as costelas da criatura, girou a lâmina de forma que partisse seus ossos, se é que aquilo tinha ossos. A besta proferiu um grito de dor que assustou as demais! Esse foi o tempo suficiente para Fernando tirar sua lanterna e sua arma da bolsa para poder atirar nos Igupiaras.
Seres horrendos, que até pareciam homens, mas tinham um corpo escamoso e possuíam nadadeiras. Os olhos eram grandes e redondos como os de um peixe e em suas costas havia guelras. A pele era verde escura e afiadas garras saíam de seus longos dedos.
Havia seis deles, e Fernando contava com apenas seis tiros, quando descarregou a arma; as criaturas estavam mortas.
Depois disso, após ele recarregar a arma e colocá-la na cintura, Fernando se dirigiu ao barco, para examiná-lo. As primeiras impressões que o arqueólogo teve foram de que realmente poderia ser uma embarcação fenícia, pois tinha seu famoso aríete de madeira e bronze na proa, que servia para perfurar e atracar os outros navios, geralmente de piratas.
Dentro da nau havia imagens que Fernando julgou ser dos filhos do Deus Baal, chamados Ayan e Anat. Essa era a melhor prova de que era realmente fenício, mas não uma embarcação de comércio, e sim um barco de guerra. Havia algo estranho naquele local e ele não sabia o que, um calafrio subiu pela sua espinha, algo estava errado.
Examinando bem, percebeu que aquele antigo navio tinha sido saqueado recentemente. Alex Michael Carter. Pensou. No entanto, não era aquilo que o perturbava. Perto dele, e por algum motivo oculta até então, havia uma cadeira, com os restos mortais de alguém, que deveria ter sido o capitão. Com ele estava um mapa, ou Fernando assim presumiu, e um colar com uma onça envolta por raios de sol, algo totalmente estranho para uma embarcação fenícia.
Sem aviso, enquanto contemporizava, o esqueleto se moveu, abrindo sua boca, da qual saiu um odor horrível. Fernando recuou já com sua arma em mãos, mas o corpo pútrido caiu realmente sem vida. Um vento gelado passou pela embarcação, chegando a derrubar alguns objetos. O arqueólogo decidiu sair da nau de guerra e não mais perturbar os que haviam morrido ali.
Ao sair do barco, Fernando estranhamente não mais viu os corpos dos Igupiaras, e assim, com cautela, continuou o trajeto que dava em dois túneis. Um, próximo à água, estava bloqueado por pedras, e ele facilmente percebeu o uso de dinamite para fechar o local. Alex! Aquele estadunidense canalha realmente tinha passado por ali, concluiu.
O outro, uma caverna, estava livre. Assim seguiu pelo longo caminho, um pouco difícil de percorrer, com um chão arenoso e as paredes cobertas por limo. Em um ponto, teve que escalar. Claro que possuía as ferramentas necessárias, mas escorregadio como estava, era bem perigosa a subida. Logo viu uma luz, mostrando que a saída se aproximava.
Ao chegar fora do subterrâneo, finalmente, Fernando avistou um lago dentro de uma clareira envolta por uma densa floresta. Sim, ele pensou, estava na Ilha, no centro do Vale, agora só faltava vê-la. Agora acreditava que era possível que ela estivesse ali, vendo o que viu próximo ao barco fenício.
De certa forma, ele estava confortado por ver a luz do dia, depois de tanto tempo no escuro. Observava os pássaros em volta e alguns pequenos macacos pregos. Um pequeno lago belíssimo com água cristalina e lindos peixes. Ele olhou para toda aquela beleza e disse:
- Vi Veri Veriversum Vivus Vici!
Uma frase do Fausto de Goethe que significa algo como – eu, enquanto vivo, pela verdade conquisto o universo – uma frase que fora seu lema por muito tempo e agora quase não lembrava mais, principalmente depois dos horríveis acontecimentos que o levaram a ficar naquele estado em que Eleanor o encontrou no bar em Minas Gerais, mas ele não queria se lembrar.
Tão logo chegara a aquele local paradisíaco, Fernando escutou um canto, limpo e suave, um canto totalmente cativante. No entanto, retirou duas pequenas porções de algodão, para tampar os ouvidos. Quase desistiu da idéia, a música era muito encantadora, mas colocou assim mesmo.
Dentro do lindo lago surgiu uma mulher de extrema beleza, ela era formosa de corpo, com a pele bronzeada que ficava ainda mais linda debaixo d’água. Tinha longos cabelos negros que se moviam suavemente enquanto nadava. Fernando teve a impressão de ver uma calda de um grande peixe próxima daquele corpo perfeito, porém quando a bela índia saiu da água ele não viu nada além dela.
Fernando refletia sobre como aquela moça era excepcionalmente bonita, não era nova, mas também não muito velha. Tinha pernas grossas e lindos seios, seu rosto tinha uma expressão de ternura e seus lábios eram carnudos. Devia ter um metro e oitenta de altura, e até o seu andar era suave e sensual.
Como o arqueólogo brasileiro já havia estado com vários índios, há muito já se acostumara com a nudez, mas a beleza dela o perturbava, e ele sabia o porquê; assim, com muito esforço, parou de admirá-la e disse em voz alta, apontando sua arma na direção dela, em idioma indígena:
- Saia totalmente da água e não volte a cantar, Iara!
A índia se aproximou dele e, saindo realmente da água, tocou delicadamente o peito de Fernando, que se afastou, tirando o que tampava seus ouvidos, mas o experiente arqueólogo não ousou olhar para ela novamente. No entanto, até o cheiro dela o embriagava e ele não sabia por quanto tempo poderia resistir a aquela criatura.
A senhora do lago falou para ele, também em sua língua:
- Acha que apenas cantando eu encanto os homens?
- Se você me encantar, não vou poder fazer o que vim fazer! – disse Fernando.
- Sim, mas será meu desejo que você não fique aqui?
- Se eu ficar, se eu me tornar um de seus peixes, a aldeia morrerá!
- Uma decisão difícil. Como eu posso saber que você não vai levar o uirapuru, como saber que ele ficará aqui?
- Porque eu sou Maramuzan e meu retorno foi profetizado!
A Iara andou circulando Fernando, e com seu toque passou pelo corpo dele, relaxando seus músculos. Ele estava quase entorpecido pelo seu cheiro, suave como flores do campo; pelo seu toque, macio como a brisa da manhã; pelo seu andar, encantador como o de uma onça. Ela parou em sua frente e se aproximou tanto que ele podia ver seus olhos negros pela primeira vez e isso quase o enfeitiçou totalmente.
- Você me fala de profecia? – ela falou, com o rosto bem próximo ao dele, e continuou. – Eu tenho uma pra você, se ficar aqui comigo viverá para sempre, mas se partir encontrará o seu destino!
Assim, a Iara o beijou, um longo e forte beijo que quase o fez cair. Fernando se sentiu como um garoto inseguro em frente à sua primeira paixão, algo que há muito tempo não sentia. Ele a segurou com firmeza entregando-se a aquele momento sublime, mas o arqueólogo tinha uma vontade inabalável e lutando contra si mesmo a afastou.
Olhando diretamente em seus olhos, com firmeza pela primeira vez, Fernando disse, em grego antigo:
- Enfrentei homens na guerra e ondas cruéis!
- Como, o que disse, Maramuzan?
- Eu não vou ficar aqui, Iara!
- Então você a ama! Só pode ser isso, para resistir a mim!
- Apenas tenho um dever a cumprir, nada mais!
Ele sabia que ela poderia ser ciumenta, principalmente após ter sido rejeitada, não queria que a Iara ferisse Eleanor.
A Senhora do Lago o levou através da floresta, para a margem da Ilha, de lá Fernando podia ver uma boa parte do Vale. Próximo à margem, havia uma pequena canoa, e do lado, algumas caixas. Ele tirou seu chapéu Cury, enxugando o suor de seu rosto com o braço e olhou para dentro delas.
- Eu não sei o que é! – disse a mulher.
- São dinamites, onde conseguiu isso?
- Do outro, que chegou primeiro!
- Mike, onde ele está agora?
- Na floresta, ele não conseguiu abrir o templo, apenas Maramuzan pode!
- Sim! Apenas eu posso abrir o templo.
- As coisas da sua amada estão aí também!
Fernando olhou em uma das caixas e encontrou várias ferramentas que deviam ser da expedição de Eleanor, ela não pegou o que precisava, viu as pistolas dela, deduziu quais eram, por serem francesas, e as entregou a Iara.
- Isso deve ser devolvido para ela, não vai sobreviver sem suas armas.
- Ela está na aldeia, junto aos acritós.
Ele colocou tudo o que precisava na canoa, conferiu para ver se estava tudo certo, sabia o que devia fazer, sabia que seria quase impossível realizar tudo aquilo, e em seu momento de dúvida ele lembrou de algo que lera há muito tempo, quando estava na Faculdade, e sorriu a respeito de como era propício agora:

"Muitos homens, segundo me parece, desejam praticar belos feitos, mas poucos têm coragem de tentar, e raros entre os que tentam são capazes de perseverar até o fim”.

Com aquela frase em mente, Fernando tirou a canoa da terra, preparando-se para cruzar o lago até o resto do Vale, a Iara se aproximou dele e perguntou:
- O que você vai fazer agora?
Ele apenas sorriu e respondeu:
- Vou provocar uma grande confusão na aldeia dos acritós!



Nota do Autor: O título desse capítulo é uma homenagem ao último livro da trilogia do Senhor dos Anéis, O Retorno do Rei. No entanto, realmente eu não fui o único a fazer uma homenagem assim, pois existe o filme O Retorno de Jedi de George Lucas, que torna isso uma homenagem dupla.
As Igupiaras são uma antiga lenda indígena, uma espécie de tribo que vive em baixo d’água, nos rios e lagos. Eles atacam os homens para comê-los e possuem uma cultura própria toda adaptada à vida subaquática.
Não existem ligações comprovadas entre os trirremes gregos com os fenícios, na verdade todos os vestígios encontrados por Fernando na ilha e no templo são absurdos e não há nenhuma prova real da presença fenícia no Brasil.
O povo que fez o barco e o templo não seria fenício, mas um povo que viria da mistura deles com os índios que viviam no Vale, ao invés de uma cultura subjugar a outra, foram as duas que se misturaram e poderiam ter “gerado” os acritós, mas tudo isso é invenção, novamente digo que essa é uma estória e não história, ou seja, uma ficção e não relatos arqueológicos reais.
Novamente há muitas citações aqui principalmente dos historiadores clássicos gregos Heródoto e Políbio. No entanto, todas se encaixam muito bem aqui.
A Iara, creio eu, é um mito tanto indígena quanto europeu, já que há elementos da sereia nela. Como a sereia a Iara encanta com a voz e é incrivelmente linda, mas ela não mata os homens que encanta. Ao invés disso, ela os transforma em peixe para que vivam sempre com ela. Há uma mistura de Iara com Mãe do Ouro nessa personagem, porque ela realmente guarda tesouros e ajuda muito o Fernando com algumas informações.
Termino fazendo uma ligação, novamente, da parte do Fernando com a parte da Eleanor, mas tenham a atenção de notar que os eventos do Capítulo 06 ocorrem antes do Capítulo 05.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Capítulo V - Aldeia dos Acritós

Mon Dieu! – Eleanor pensou. Ficou inerte por alguns minutos, não ouvia nada até receber um tapa daquele homem e recobrar a consciência. Ela não podia acreditar naquilo, não parava de pensar no que o Beto havia lhe dito, como queria que ele estivesse ali agora, Fernando saberia o que fazer.
O índio era grande, enorme na verdade, devia ter mais de dois metros e isso não era natural. Um pouco gordo, mas tremendamente musculoso como um pugilista. Tinha pinturas de onça em várias partes do corpo, desenhos no rosto que lhe davam uma aparência ainda mais ameaçadora e pequenos gravetos presos à face fazendo lembrar os bigodes de uma onça-pintada. O homem era uma fera selvagem pronta para o ataque. Possuía muitos colares e uma expressão muito forte e convicta.
A francesa olhou em volta e viu muitos índios como aquele, não tão grandes, mas todos altos e fortes demais para índios comuns. Usavam azagaias, bordunas, lanças e arcos longos como armas e ela via suas mulheres portando-as como se fossem os homens. Podia ver os mais velhos que sempre estavam com algum pequeno animal, como um macaco ou papagaio.
Aquela aldeia era razoavelmente grande. Eleanor imaginou que seria exatamente redonda se vista por cima. Suas ocas aparentavam ser feitas de palha, mas eram de pau a pique por dentro. Existia uma grande maloca no centro de onde saía um cheiro tão forte de ervas que ela podia sentir facilmente. Via peles de vários animais sendo curtidas e mulheres preparando algum tipo de bebida que era muito disputada pelos indígenas.
Tudo isso foi percebido pela arqueóloga e mesmo estando com uma forte dor de cabeça, Eleanor percebeu que não havia nenhuma criança na tribo.
Aquele índio olhou para ela com fúria, erguera-a pelos cabelos e aproximou o rosto em um gesto que ela interpretou como se ele a estivesse cheirando, estudando-a cuidadosamente. O homem bufou fazendo uma expressão de total desprezo, como se a francesa não fosse nada para ele, e então a jogou novamente naquele chão duro. Eleanor concluiu que seu agressor se tratava de um selvagem, um animal raivoso e violento.
- Abá-pe endé? – disse o índio. – Aba-pe endé? Mamõ-pe ere-îkobé?
Ele estava ficando com raiva e LeBeau não entendia nada do que aquele selvagem dizia, lembrou de Beto novamente. Ela achou melhor falar, mesmo que ninguém entendesse, e começou:
- Eu não entendo o que...
O índio desferiu-lhe um poderoso tapa com extrema violência. Eleanor caiu e cuspiu sangue, a dor em sua cabeça voltara agora com toda a força, um som agudo se elevou aos sons da aldeia. Todo seu corpo doía e era penoso até mesmo respirar. Por um instante ficou zonza, quase não percebeu que o índio começou a falar de novo:
- Xe Ucrarí. Xe morubixaba supé!
- Abá-pe endé? Mamõ-pe ere-îkobé?
Ele a ergueu pelo pescoço com um só braço e apertou fortemente, sufocando-a. Quando a dor era quase insuportável, quando ela estava quase desmaiando, ouviu um grito e o índio largou-a rapidamente, fazendo com que Eleanor caísse ruidosamente no chão mais uma vez.
A arqueóloga viu outro índio, bem mais velho, na verdade aparentava ser o mais velho que havia em toda aldeia. Possuía longos, mas poucos, cabelos brancos alvoroçados. Andava com a ajuda de uma espécie de cajado com uma cabaça em sua extremidade superior e todos abriam caminho para ele, pois pareciam respeitá-lo muito.
O velho olhou com serenidade para o índio que estava com Eleanor e disse:
- A’ani! A’ani xo’ene!
- Nde apypyk a’e!
O índio olhou para o idoso com raiva, mas resolveu não desafiá-lo e se afastou. A jovem francesa até pôde perceber certo medo em seu agressor e olhou para o ancião com uma maior curiosidade; ele já estava se aproximando dela com um grande sorriso. Passou a mão em seus cabelos com delicadeza e a colocou gentilmente sentada. Aquele velho homem inspirava tanta confiança que Eleanor quase esqueceu sua dor e medo. Quando ela estava mais calma ele finalmente começou a falar:
- Sou eu Rarití. Sou eu paîé!
- Um pajé? Você é um curandeiro – respondeu ela.
- Deve ocê tirar culpa do morubixaba, muito bravo com seu!
- Eu não fiz nada para seu chefe! Por que ele está bravo comigo?
- Ucrarí bravo por seu vir aqui, comer aqui, dormir aqui e falar que não Uirapuru, mas depois ir tabu pegar Uirapuru.
- Meu não, quem quer pegar o uirapuru, é o Mike?
- Aîuru-îuba. Como ocê homem, cheio de gente não aqui!
Ela conhecia essa expressão, aîuru-îuba. Era dada aos franceses pelos índios da Confederação dos Tamoios quando o Rei Henrique II da França determinou uma invasão ao Brasil logo no século XVI. No entanto, não deveria ter outro francês ali, tudo isso era muito estranho.
- Não, eu não estou com eles! – disse Eleanor. – Tem que explicar que eu vim com outros, que vocês mataram, Dieu. Eles eram boas pessoas e vocês mataram todos.
- A’an! Ocê aqui entrar tabu, pegar sagrado Uirapuru e trazer mal pro anama, ocê destruir Acritós!
- Não eu...
A arqueóloga parou porque Rarití estava certo. Realmente tinha vindo ao vale para pegar o Ídolo, veio para levá-lo. Na ótica dos índios Elenor iria roubá-lo deles, e por suas crenças trazer a desgraça para todo o seu povo. Ela ficou triste, lembrou-se do que Beto dissera no dia da formatura. Um ladrão de tumbas simples!
O velho índio a ergueu e a levou para a grande maloca que ficava no centro da aldeia. Lá dentro a francesa pôde ver várias crianças, todas doentes, com chagas e dores horríveis. Ela olhou para o sábio pajé já sabendo o que ele iria falar.
- Olho ocê nos curumins? – perguntou o indígena idoso. – Eles assim antes de todos por serem mais fracos!
- Eu sinto muito, Rarití!
- Eles assim só por ocês aquí, só por ocês perto Uirapuru.
- Eu não sei o que dizer!
- Ocês levar Uirapuru, mal passar todos!
Uma súbita dúvida e tristeza tomaram conta dela. O que estava fazendo? Ela não podia levar o Ídolo de lá, mesmo com os maus tratos que recebera, mesmo com seus hábitos selvagens, Eleanor se apiedou daqueles índios quase acreditando que o Uirapuru realmente estava ligado à saúde deles, mas isso não importava, pois seu problema maior agora era como sair de lá e encontrar Alex Michael Carter. Não tinha mais certeza do que faria com o Uirapuru, mas não deixaria aquele canalha pegá-lo.
Ao saírem da maloca a arqueóloga viu o índio que a tratara com selvageria, o homem que a espancara e a prostrara. O morubixaba que estava com um Ibirapema, um tacape sagrado usado para o ritual por alguns índios brasileiros antropofágicos. É essa arma que desfere o último golpe no prisioneiro antes da aldeia devorá-lo. Estava junto com uma linda mulher com pinturas semelhantes às do Rarití. Como ele, usava um bastão com cabaça, mas de menor tamanho, mais parecido com um cetro do que um cajado.
O velho percebeu o medo de Eleanor e disse tranqüilizando-a:
- Eles caça seus, caça aîuru-îuba. Eles mataram Acrítos, eles valor, agora passam pra esse pra anama.
- Quem são eles?
- Ele Ucrarí, o morubixaba da aldeia, um chefe de guerra. Ela Anakeá. Ela paîé mais pequena!
- Quem é o índio que me trouxe aos pés de Ucrarí?
- Ele não, ela! Emanuaçu, ela pega ocê na mata! Grande honra ocê por Emanuaçu! Grande guerreira ela! Agora sempre cuida aîuru-îuba.
- Sim, eu sou francesa! Meu nome é Eleanor!
- Eleanô?
- Não! EleaNOR!
- Sim! EleaNÔ!
- Ah, il ne manquait plus que ça! – disse ela sem esperança que o índio aprendesse seu nome corretamente. A arqueóloga teve novamente uma vertigem e só não caiu porque o velho a segurou. – E você Rarití? Por que é gentil comigo?
- O que ser gintil?
- Por que é bom comigo?
- Té! Porque ocê é...
Eles foram interrompidos com a chegada de Emanuaçu, que falou:
- Xe erasó a’e, Ucrarí nhe’eng!
- Umã-me-pe?
- Morubixana oca!
O velho índio olhou para Eleanor e falou:
- Ocê ir agora! Emanuaçu levar oca de Ucrarí! Ocê fica bem lá!
- Não, eu não quero ficar com ele, por favor!
- Umã! – gritou Emanuaçu e puxou Eleanor pelos cabelos.
Eleanor já estava cansada de se prostrar a aqueles índios, ficou firme e passou uma rasteira na jovem guerreira que caiu no chão. Todos os Acritós pararam para olhá-las, mais animados do que assustados com a sua reação. Logo ela sabia que eles não iriam interferir e apesar da dor que sentia ficou de pé ameaçadoramente para Emanuaçu.
A índia se levantou com fúria no olhar, agora a francesa pôde perceber o tamanho daquela guerreira. Devia ter aproximadamente um metro e oitenta, como os outros estava pintada de onça, era incrivelmente bonita e forte. Tinha o corpo bem desenhado e pernas muito longas. Estava vestida apenas com uma espécie de pele que lhe servia como a parte de baixo de um biquíni. Trapos de pano envoltos em cada um dos joelhos e cotovelos completavam toda a sua prática indumentária.
A jovem arqueóloga sabia que aquela lutadora a partiria ao meio, assim resolveu atacá-la primeiro, pois julgava que por seu pequeno tamanho Eleanor seria mais rápida. Partiu pra cima de Emanuaçu e tentou golpear seu rosto. Como uma onça selvagem, a índia esquivou-se facilmente e aproximou seu rosto ao dela encarando-a, desferindo um poderoso golpe com sua própria cabeça rugindo para a francesa, que simplesmente desmaiou.
Eleanor começou a acordar e a primeira coisa que percebeu foi um suave som de flauta tocando uma canção desconhecida para ela. Uma mão macia acariciava os seus cabelos dando a ela um conforto tão grande que a arqueóloga quase dormira novamente. Foi então que ela abriu os olhos e viu que Anakeá estava junto a ela na rede e Fernanda próxima, tocando sua flauta.
A esposa do morubixaba devia ter uns quarenta anos, mas era muito bonita ainda, tinha um lindo corpo e olhos que apenas traziam paz a Eleanor. Como todos ela usava pinturas e adereços de onça, mas apenas como Rarití ela usava uma araçóia, uma saia de palha que só os pajés usavam.
- Xe por posanga ocê e fica bom! – falou a índia.
- Obrigada! Você é a esposa de Ucrarí, não é?
- Pá! Esposa de morubixaba é eu.
- Você é como o Rarití, não me machuca?
- Eê! Rarití acha ocê Maramuzan, eu não, mas ele saber mais eu!
- O que é isso?
- Visão de longe, Maramuzan uma vez aqui e agora de novo, ele não deixa Uirapuru sair, ele enfrenta seu anama!
- E por que você acha que não sou eu?
- Eu já vi Maramuzan, ele...
Anakeá parou de falar olhando para a entrada da oca. Eleanor viu que era Emanuaçu que a vigiava sempre, como o pajé disse que faria. Como não viu mais ninguém além delas a francesa resolveu perguntar a Fernanda:
- Quem a vigia, Fernanda?
- Ninguém! – disse a loira parando de tocar. – Algo a ver com a flauta, eu acho!
- Amiga sua fala com os Deuses – disse a mulher indígena. – Faz sons com seu sopro e fala com Tupã.
Para os Acritós quem tocava algum instrumento musical podia falar com seus Deuses e por isso a jovem antropóloga foi poupada dos maus tratos que Eleanor sofria. Aquele era o único alívio que as duas mulheres brancas tiveram desde que entraram naquele maldito vale.
Eleanor pensou que destino teria Fernanda no meio daquilo tudo. A francesa a achava ingênua demais para ficar naquele lugar. No entanto, ela era uma antropóloga afinal de contas e já devia estar acostumada a viver entre nativos. Talvez até gostasse disso, pois parecia bem calma agora.
Repentinamente uma forte explosão assustou-as, elas foram à porta da oca e viram que a paliçada que cercava a aldeia estava destruída e pegando fogo, os índios estavam assustados porque nunca tinham visto algo assim, muitos gritavam que era obra do Boitatá, a gigante cobra de fogo, mas Eleanor sabia que podia ser simples dinamite, Anakeá olhou pra ela e disse:
- Ocê aproveita agora e foge, encontra Maramuzan e traz ele pra aldeia, não deixa seus pegar Uirapuru!
- Vamos Eleanor! – disse a amiga. – Vamos logo sair daqui!
- Vão logo! – exclamou Anakeá. – Tome isso seu!
A índia lhe entregou suas pistolas, Eleanor pegou-as e correu junto com a amiga.
Entretanto Emanuaçu já estava esperando por isso e logo se pôs a perseguir as duas. Em um ato de desespero, Fernanda se jogou contra a índia e as duas se engalfinharam no chão.
- Vá! – gritou a jovem loira. – Saia deste lugar maldito!
Eleanor fugiu em meio à confusão, passou pela barreira destruída e correu, correu por várias horas pela mata sem destino, com medo. Estava preocupada com a colega, mas continuou sem olhar para trás.
Ela demorou em parar e quando o fez, simplesmente caiu no meio da floresta sem saber onde estava.
Mesmo do jeito que se encontrava, exausta, conseguiu ouvir o som de alguém se aproximando, a francesa não podia acreditar, será que era Fernanda que escapara ou era a maldita da Emanuaçu? Não se importava mais, até queria que fosse ela, queria acertar as contas com aquela índia, Eleanor se levantou e olhou para quem vinha em sua direção...



Nota do Autor: Há muitas falas em idioma indígena aqui, muitos podem ter ficado perdidos, mas era isso mesmo que eu queria que acontecesse, já que Eleanor não sabe falar esse idioma e queria que os leitores se sentissem como ela.
Eu usei o Tupi para criar os diálogos e eles realmente têm significado, mas nada que estrague a estória, são coisas como: “Quem é você?” ou “De onde você vem”, ou seja, nada demais.
O que realmente pode ter ficado confuso foi quando o Pajé fala em português carregado de sotaque e erros gramaticais, mas ainda assim, prestando bem atenção, acho que se pode entender tudo que ele fala!
A natureza dos índios é obviamente irreal, não existem índios tão grandes e fortes como descrevo, isso só aumenta o ar sobrenatural do vale, mas pensando bem nada impede que realmente tenham existido os Acritós.
A idéia de a aldeia ter crianças enfermas é uma clara homenagem ao filme Templo da Perdição, mas diferente deste, os índios foram bem mais violentos com Eleanor que os indianos com o Indiana Jones...