quinta-feira, 13 de maio de 2010

Capítulo III - Entrando no Vale

Organizar aquela expedição demorou muito mais que Eleanor LeBeau poderia prever. Foram necessários três longos meses para unir os trinta e sete integrantes que eram compostos por arqueólogos, antropólogos, escavadores, geógrafos e rastreadores. Assim, com tudo devidamente preparado, eles finalmente partiram para o desconhecido Vale dos Acritós.
O Vale era cercado por um paredão de montes escarpados no qual a forma de entrar mais acessível seria uma estreita caverna, que provavelmente era a única entrada para se chegar ao interior da morada dos índios e claro, ao Templo. Um outro meio seria obviamente escalando, mas uma expedição daquele porte tornaria essa idéia completamente inviável.
A entrada da caverna era coberta por trepadeiras que camuflavam sua entrada tornando muito difícil de achar. Os rastreadores e geógrafos foram fundamentais para que se encontrasse a abertura que ficava aos pés de um imenso morro formado por roxas sólidas. Principalmente o mestiço conhecido como Joel Oguatá, que fora o mais perto de um sangue indígena que Eleanor conseguiu contratar, já que todos os rastreadores nativos conheciam muito bem os Acritós por suas lendas e os temiam inexoravelmente.
Logo na entrada, mesmo antes de penetrarem na caverna uma das antropólogas; uma linda e alta moça de cabelos loiros e olhos azuis, que provavelmente já tinha estado em várias aldeias indígenas, chamada Fernanda Schimidt; disse espantada:
- Olhem ali!
Havia uma pequena coruja em uma árvore bem próxima a caverna, como se tivesse guardando o Vale. A ave era de uma tonalidade que ia do negro ao cinza e havia algo de muito sinistro em seu olhar! Ao ver o medo percorrer todos, LeBeau prontamente espantou a coruja e falou:
- Estão vendo? Não há mal-agouro nenhum. Trata-se apenas de uma simples e linda coruja!
- Não é o... – começou a dizer o caboclo Oguatá, mas este foi bruscamente interrompido pela arqueóloga...
- Matintapereira? Isso é um mito, não existe na verdade!
Meio contrariados os integrantes da expedição continuaram e entraram relutantes na caverna. O seu interior não era muito íngreme, assim não dificultava muito seu acesso a Terra dos Acritós.
Ao entrar todos puderam sentir nitidamente o forte odor dos resíduos que se formaram ali durante os séculos de completas trevas e silêncio. Parecia que os humanos a muito não colocavam os olhos naquela escuridão, mas logo perceberiam que estavam enganados...
Os escavadores ligaram suas lanternas; ao gentil pedido do líder dos geógrafos, um negro velho e muito experiente Daniel Gonçalves Dias; iluminando completamente o local ajudando o trabalho dos rastreadores.
Fizeram um longo caminho até que a caverna se bifurcou em duas novas passagens. Foi ali que o rastreador Joel pode encontrar rastros de pessoas que passaram por pela via da esquerda não há muito tempo e achou melhor avisar aos companheiros:
- Um grupo de aproximadamente vinte homens passou por aquele lado, ao julgar pelos rastros eles não são indígenas e não estamos a mais de três horas de distancia deles.
- Je comprends! – disse a francesa – Oguatá, mas há uma suave brisa vinda do caminho da direita, deve haver uma saída não muito longe, não é mesmo?
- Eu... concordo!
- Mas e os que passaram pela esquerda? – perguntou um dos arqueólogos, um jovem rapaz muito magro e alto, chamado Joaquim Carvalho – Quem poderiam ser eles? Não seria melhor segui-los?
- Acho melhor seguir por onde determinei! – respondeu com firmeza Eleanor, pois sabia que Carvalho acabara de se formar e estava ansioso para mostrar serviço e isso poderia ser um problema – Mesmo porque o próprio rastreador concorda comigo.
LeBeau sabia exatamente quem liderava a outra expedição. Era Alex Michael Carter com certeza! Entretanto ela não tinha a menor vontade encontrar o canalha que fez tanto mal a sua amiga tão cedo...
Ao continuar pelo caminho da direita, a brisa logo foi aumentando drasticamente, tornando-se uma corrente gelada que esfriava até os ossos. Uma sensação estranha tomou conta da experiente arqueóloga, um arrepio lhe subiu à espinha como se algo muito ruim estivesse por acontecer.
Inesperadamente uma gargalhada maligna pode ser ouvida claramente por Eleanor. Suas pernas começaram a bambear, começou a se sentir caindo, caindo sem parar. Seus joelhos se dobraram ela começou a vomitar. Ouvia agora os homens de sua expedição gritando apavorados.
A arqueóloga tinha que fazer alguma coisa, algo estava errado e tudo dependia dela. Quando já estava quase se recuperando, uma terrível visão surgiu em sua frente desafiando sua sanidade.
Seres horrendos quase amorfos, do tamanho de crianças, rodeavam-na por todos os lados. Tocavam seu corpo queimando suas roupas e dilacerando sua carne causando uma dor quase insuportável.
- Não! – ela disse. – Isso não poderia ser real, isso não era real!
LeBeau fechou os olhos.
- Fique firme mocinha, são apenas alucinações, força, não há nada aqui! Tem que se recobrar. Você tem que levantar, erga-se!
Prontamente a francesa abriu os olhos, agora percebera a realidade, não havia nada, mas seus companheiros não participavam de sua recente e incrível revelação. A insanidade fazia com que um atacasse o outro companheiro, achando que era um daqueles monstros criando em uma contusão generalizada.
Ela não podia deixar que aquilo permanecesse! Gritou e bateu em cada um deles até que recobrassem a consciência. Entretanto oito integrantes da expedição foram mortos em meio a aquela loucura, incluindo o jovem arqueólogo Carvalho...
Mas o que teria provocado tudo aquilo?
Quase como respondendo essa pergunta Oguatá disse:
- Era um Avasati! – Fernanda encarou o caboclo reconhecendo suas palavras e Joel continuou – Olhem ali, estão vendo?
Havia um corpo próximo ao local que estavam. Era tão antigo que Eleanor não conseguiu analisar a quanto tempo aquele cadáver estaria ali. Ela foi até lá, e examinou o corpo. Havia uma substancia estranha entre os ossos, algo que deve ter sido modificado com o passar dos anos...
- Non! – a arqueóloga exclamou – Não é nenhum espírito maligno indígena! Estão vendo isso? É apenas algum tipo de alucinógeno. Deve ter nos afetado assim que entramos por essa passagem, quando o inalamos, nada demais!
- Que fez com que víssemos os mesmos monstros? – falou um dos escavadores; o pequeno, mas esperto homem chamado Paulo Martins. – Essa não vai colar!
- Sim, alucinações coletivas já foram registradas antes! – respondeu a antropóloga Fernanda – É mais comum do que vocês imaginam!
- Estou dizendo que é um Avasati, fomos amaldiçoados! – Disse o rastreador apontando para a francesa – Você não devia ter incomodado aquela coruja!
- É Dra. LeBeau para você Oguatá! Já estou cansada de suas superstições! Vamos juntar e enterrar os mortos temporariamente e vamos continuar seguindo com a expedição!
Eles continuaram pelo caminho até começarem ao ouvir um ruído de água fluindo ao longe. Não demorou muito para eles chegarem a uma grande fenda, comprida e bastante funda. Seu único acesso para continuar era uma ponte pênsil que ligava es extremidades da fenda. A ponte parecia ser muito antiga, feita de uma estreita passarela madeira e cordas.
- Bom, acho melhor descansarmos aqui antes de prosseguirmos. – concluiu Eleanor vendo que todos ainda estavam muito abatidos – Depois continuaremos. A saída não deve estar muito longe.
- Não está. – respondeu Daniel Dias – Pelo que pude ver pelo GPS acho que já estamos em bem mais que a metade do caminho!
- Ótimo! – a francesa sorriu e todos acharam que seria pela notícia, mas de fato foi por finalmente ela ter tido uma resposta rápida em português. Ela disse “ótimo” e não “très bon”. Estava se acostumando com o idioma. – Oguatá eu quero sua ajuda aqui, sim?
Os dois foram até a ponte e testaram para ver se era possível passar por ela. Concluíram que sim e quando voltaram a arqueóloga pode ver a forma que Fernanda Schimidt, tocava suavemente sua linda flauta, parou e olhou para ambos. Aquela antropóloga estava com ciúmes? Pensou. Era incrível que mesmo depois de tudo, até da morte de companheiros havia um possível romance surgindo. Esse pensamento fez LeBeau lembrar de Beto, mas ela logo se recuperou disso.
Todos descansaram bem e logo se colocaram para continuar a expedição. Assim Eleanor testando novamente a ponte disse:
- Essa ponte é velha mais bem forte! Nós iremos um a um por causa da carga. Fez uma pausa e continuou – Se a ponte balançar vocês terão o impulso de se encolher, mas não façam isso. Quando ocorrer, estiquem os braços e separem as cordas, assim ela para de balançar e volta a ser estável.
Houve uma demora muito grande para atravessarem a frágil ponte. A francesa teve que ajudar muitos que estavam com medo de passarem. Ela acabou ficando na ponte, próximo a uma extremidade enquanto Oguatá ficava na outra, ajudando todos a passarem.
Apenas Fernanda quase caiu, derrubando sua lanterna, mas o rastreador a segurou firmemente e ficou sem jeito pelo olhar doce que a antropóloga lhe dirigiu. Eles ficaram ali por um tempo, até que Paulo Martins resolveu interromper o momento:
- Já entendi, vão ficar ai o dia inteiro né? – havia um grande sorriso no rosto do escavador – Se fosse possível, gostaria de passar ainda hoje sabe?
- Claro! – a jovem respondeu envergonhada – Vamos indo!
Os outros conseguiram chegar ao outro lado sem muitos problemas e seguiram em frente.
Não demorou muito para eles chegarem ao final do caminho. Logo ouviram os pássaros e chegaram à saída. Era no alto do morro, assim eles podiam ver quase todo o Vale dos Acritós.
Era grande, ou maior que todos presumiam. Possuía uma mata fechada e escura, não muito típica da Mata Atlântica. Possuía um lago que ficava mais ou menos no centro do Vale, com uma pequena ilha de pedras.
Não conseguiam ver nenhuma aldeia, mas podiam ver uma estranha formação à esquerda de onde estavam não muito distante do lago. Eleanor imaginou que podia ser muito bem o Templo e deu ordens para que todos se dirigirem para aquele local. Iriam até a margem e se guiar por lá.
Eles seguiram resolutos por uma trilha embrenhando pela mata, sempre atentos com algum possível encontro com os Acritós. Daniel Dias, o geógrafo, foi analisando o solo para guiá-los até o lago, já que não podiam ver quase nada dentro da densa floresta. Recebia a ajuda de Oguatá que colocou um de seus rastreadores a frente para poder cuidar da navegação terrestre.
Enquanto todos estavam tranqüilos e pensativos; cada um com sua tarefa e pensando no que fariam com os ganhos por aquele grande achado, um Templo Fenício na América; houve um estrondo e, os membros da expedição que se localizavam mais a frente da marcha. Puderam ver nitidamente um tronco de árvore, cheios de estacas caírem sobre o escavador Paulo Martins e dois dos rastreadores.
LeBeau em um impulso tentou correr até eles, mas foi impedida por Oguatá que, bem cuidadosamente, se aproximou da armadilha observando todos os lados antes de voltar-se para os três, que já estavam mortos.
Tocou os corpos, tocou as estacas, passou o dedo em um musgo esverdeado presente nelas e depois lamber e cuspir disse:
- As estacas estão envenenadas, melhor tomarmos cuidado redobrado!
Transtornados, todos demoraram a continuar, a experiente arqueóloga achou que deveriam fazer mais uma pausa, mas voltando o caminho e ficando longe da armadilha, para não serem rastreadas pelos Acritós.
Desta vez Fernanda estava muito abalada, pois nunca tinha visto ninguém morrer antes. Ela estava sobre o efeito do alucinógeno na caverna e não viu quando os antigos companheiros morreram, apenas agora. Joel se aproximou dela para tentar conforta-la e a antropóloga aceitou seu abraço.
- Oguatá? – perguntou Schimidt - Seu nome indígena, não?
- Sim, recebi esse nome da aldeia de minha mãe. Significa andarilho!
- Todo nome tem um significado! O meu, Fernanda, é teutônico e quer dizer ousada, já Schimidt é a palavra germânica para ferreiro.
- Que interessante! – disse o rastreador tentando ser amável – Ficará tudo bem Fernanda. Eu cuidarei de você.
Eu cuidarei de você. Eleanor, observando os dois, refletiu por um tempo sobre aquela frase. Será que Fernando um dia diria isso para ela? Provavelmente não porque LeBeau era não fazia o tipo de moça indefesa. Era muito mais forte que aquilo e de qualquer forma Beto a tinha decepcionado, mas ainda pensava nele. Por quê?
- Não podemos parar toda vez que temos um problema! – pronunciou com cuidado o velho geógrafo – Desculpe, não quero desafiar sua autoridade, mas acho que seria melhor sairmos logo daqui! Já estamos bem perto do lago.
- Tudo bem, Daniel! – a francesa respondeu com um sorriso tão delicado que fez Dias desviar o olhar. Ele tinha uma imagem paternal que a arqueóloga adorava – Só estou dando um tempo para eles, já partiremos. Obrigada pela ajuda!
Logo a expedição se colocou mais uma vez em marcha, agora com o caboclo Joel liderando na frente, passando pelo mesmo local onde a armadilha havia matado três dos seus membros.
- Foi muito prudente voltarmos Doutora LeBeau! – exclamou Oguatá ajoelhado olhando para o chão – Os Acritós estiveram aqui há pouco tempo.
- Como pode ter certeza que são eles? – perguntou Fernanda – Podem ser quaisquer outros índios!
- Está vendo a profundidade dessas pegadas? Se me der o exemplo de outra tribo que tenha em seus integrantes homens com mais de cem quilos e acima de dois metros de altura...
Repentinamente ele parou, houve um perturbador silêncio por alguns instantes.
- Há um fio aqui, estão vendo? – disse o experiente rastreador. – Devia ser para mais algum tipo de armadilha, mas eu desarmei!
Daniel Gonçalves Dias tomou a frente:
- Mas agora esta não pode nos pegar mais. Temos que sair logo desta mata! Vamos!
Ao dizer isso o geógrafo saltou pelo fio e continuou, mas rapidamente afundou no chão e caiu sobre um buraco com mais estaca envenenada. Berrou, tremeu em espasmos involuntários, até finalmente morrer.
Esses Acritós são realmente o maior dos perigos desse maldito vale, Eleanor lembrou do que Dr. Vilela havia lhe dito. Todos se prepararam para continuar com mais cuidado ainda. Mas Joel continuava parado, absorto por um bom tempo.
- O que foi Oguatá? – perguntou LeBeau.
- É o sentido de índio dele – Respondeu outro rastreador – Nunca o vi...
- Todos de costas uns para os outros. Agora! Os malditos estão aqui!
Ao falar isso Joel Oguatá foi alvejado por flechas vindo da mata e caiu ruidosamente no chão, já sem vida. A experiente arqueóloga rapidamente sacou suas pistolas, ela tinha duas 5.7 da Fabrique Nationale. Como alguns da expedição, ela atirou contra a mata tentando acertar os agressores, mas apenas mais flechas zumbiram no ar ao encontro dos membros da expedição.
O ataque foi rápido e esmagador. Flechas voavam de todos os lados sem que ninguém pudesse entender corretamente o que estava acontecendo. Os acritós gritavam escondidos na mata causando mais desespero e confusão. Em pouco tempo quase todos da expedição estavam mortos, o fim parecia inevitável.
A francesa, em um ato impulsivo, se embrenhou na mata para tentar encontrar algum daqueles índios e em meio a toda aquela confusão um tacape se chocou rapidamente com sua cabeça, Eleanor caiu e não conseguiu ver quem a atacou, apenas uma risada, que ela julgou ser feminina, pôde ser percebida antes de desmaiar...



Nota do Autor: O Matintapereira é uma lenda indígena de mal-auguro onde o olhar de uma coruja revela que algo de muito ruim está para acontecer, e realmente coisas muito ruins acontecem no Vale e esse início é muito bom para prever o que aguardava a Eleanor e principalmente a expedição.
O Avasati é um espírito indígena que entra no corpo de uma pessoa enfraquecendo sua mente para que ele possa possuí-la. A forma que é apresentada aqui é uma interpretação totalmente minha.
O ataque dos acritós foi rápido e furtivo, muitos me falaram que eu tirei isso de vários lugares, mas na verdade é assim um ataque indígena. Queria também mostrar logo de cara que os acritós são muito implacáveis e claro estão em seu território o que torna muito difícil combate-los.

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